O gatilho da memória


 O gatilho da memória


A ansiedade vital
 

Os fenômenos que constroem cadeias de pensamentos estão num movimento contínuo e inevitável, num fluxo ininterrupto, num estado de ansiedade vital. A ansiedade vital, gerada pela solidão da consciência virtual, é saudável, pois movimenta todo o processo de construção do psiquismo, sejam pensamentos, ideias, personagens, ambientes, desejos, aspirações.
 
A ansiedade vital torna-se uma ansiedade doentia quando contrai o prazer de viver, a criatividade, a generosidade, a afetividade, a capacidade de pensar antes de reagir, a habilidade de se reinventar, o raciocínio multifocal, entre outros. Um dos mecanismos psíquicos que mais transformam essa ansiedade vital numa ansiedade asfixiante é a hiperconstrução de pensamentos. Quem tem uma mente agitada, quem é uma máquina de se informar e de pensar, ultrapassou os limites saudáveis da movimentação psíquica e desenvolverá a Síndrome do Pensamento Acelerado. A SPA é como um filme editado em altíssima velocidade. Só há apreço nos primeiros segundos, depois o desprazer atinge o espectador.
 
De acordo com a TIM, a ansiedade vital é um testemunho solene de que pensar não é apenas uma opção do Homo sapiens, mas inevitável. Se o Eu não construir cadeias de pensamentos numa direção lógica e coerente, fenômenos inconscientes as produzirão. A ansiedade vital estimula uma dança de fenômenos nos bastidores da nossa mente, mesmo quando dormimos. Os sonhos representam um reflexo dessa fascinante movimentação construtiva.
 
Gatilho ou fenômeno da autochecagem
O gatilho da memória é o primeiro fenômeno que se apresenta na dança dos fenômenos inconscientes que constroem pensamentos. Ele é acionado quando entramos em contato com cada estímulo extrapsíquico (luz, sons, estímulos táteis, gustativos, olfativos) ou intrapsíquico (imagens mentais, pensamentos, fantasias, desejos, emoções) e inclusivecom determinados estímulos orgânicos (substâncias metabólicas, déficit de neurotransmissores, drogas psicoativas).
 
O gatilho atua em milésimos de segundo, sem que nosso Eu tenha consciência da sua operacionalidade. É ele quem abre as janelas da memória, ativando a interpretação imediata e a consciência instantânea. O leitor sabe nesse exato momento quem é, onde está, o que está fazendo, sua posição espaçotemporal, não por causa da ação consciente e programada do seu Eu, mas porque o gatilho da memória está ancorado em centenas de janelas que sustentam essa percepção instantânea. Você nunca ficou admirado com esse processo?
 
Em uma aula ou conferência de uma hora, é possível que o gatilho da memória seja detonado milhares de vezes para abrir milhares de janelas à compreensão imediata de cada verbo, substantivo, adjetivo, pronome. Todos os dias, vemos milhares de imagens que são interpretadas rapidamente pelo acionamento do gatilho da memória e as consequentes aberturas das janelas. Por isso, esse fenômeno também é chamado de autochecagem da memória.
 
Portanto, as primeiras impressões e interpretações dos milhares de estímulos que percebemos, ainda que se tornem conscientes, são patrocinadas por fenômenos inconscientes. A ação destes ocorre no primeiro ato do teatro mental. Compreendemos as palavras escritas ou faladas não pela ação consciente, programada e diretiva do Eu, mas pelo pacto do gatilho com as janelas da memória.
 
Se dependesse do Eu encontrar cada janela a partir dos estímulos com que temos contato, não teríamos uma resposta inicial tão rápida, não seríamos a espécie pensante que somos. A ação do gatilho da memória é fenomenal. Ele checa os estímulos em bilhões de dados na base da memória com uma rapidez surpreendente. Você acabou de ler minhas palavras através da ação, quase na velocidade da luz, desse magno fenômeno. Sem ele, o Eu ficaria confuso e não identificaria linguagens, sons e imagens dos mais diversos ambientes. Não seria um leitor.
 
O gatilho da memória e suas masmorras
Sem o pacto do gatilho com as janelas da memória, reitero, não seríamos uma espécie pensante. No entanto, com esse pacto, podemos também ser uma espécie aprisionada. Todas as fobias, como a fobia social, a claustrofobia, a acrofobia (medo de altura), são decorrentes dele. As obsessões e a dependência de drogas também têm como protagonista o gatilho, que abre janelas killer imediatamente.
 
Se, por um lado, o gatilho da memória é um grande auxiliar do Eu, por outro, pode serseu grande algoz. Por abrir janelas doentias, pode levar a atos falhos ou a interpretações distorcidas, asfixiantes, superficiais ou preconceituosas. Quem tem claustrofobia, embora não conheça o pacto entre o gatilho e as janelas killer da memória, sabe como esse medo é cruel, ainda que, sem dúvida, possa ser superado. As ferramentas que serão aqui expostas oferecem uma contribuição ao processo psicoterapêutico.
 
Quando um portador de claustrofobia entra num elevador, um aperto no peito, um movimento do aparelho ou uma sensação de falta de ar fazem com que o gatilho abra rapidamente janelas killer que traduzem que o elevador parará e ele poderá morrer. O volume de tensão decorrente dessa janela bloqueia o acesso a milhares de informações, gerando a Síndrome do Circuito Fechado da Memória. O Eu, portanto, entra numa armadilha psíquica para a qual não se programou, o que obstrui sua lucidez e sua coerência.
 
Tive o privilégio de descobrir essa síndrome e o dissabor de saber que ela está na base de fobias, farmacodependências, obsessões, depressão, homicídios, suicídios, guerras, genocídios, exclusão social e até do baixo rendimento intelectual.
 
Certa vez, um aluno brilhante foi mal numa prova. Ele havia estudado, sabia a matéria, mas ficou tenso e, sem conseguir recordar as informações, teve um péssimo desempenho. O professor o criticou, ele ficou abalado e registrou essa frustração. Estudou mais ainda para a prova seguinte. Quando chegou o dia, o gatilho da memória entrou em cena e abriu a janela killer que continha o arquivo do medo de falhar.
 
O resultado? Foi vítima da Síndrome do Circuito Fechado da Memória. Não conseguiu abrir os demais arquivos que continham as informações que havia estudado. Teve ansiedade intensa e um péssimo rendimento intelectual. Toda vez que ia fazer uma prova, o pacto entre o gatilho da memória e as janelas killer era um drama. Acabou jubilado depois de anos de péssimo desempenho nas provas. Um ato grave contra sua inteligência. Muitos gênios são tratados como deficientes mentais por causa desses perniciosos mecanismos.
 
Como professores e psicopedagogos em quase todo o mundo praticamente desconhecem o pacto entre o gatilho e as janelas da memória, não conseguem contribuir com esses alunos. Nesse caso em particular, o jovem só conseguiu se superar, estruturar sua autoestima, brilhar em seu raciocínio e no desempenho das provas quando aprendeu a resgatar a liderança do Eu. Enfim, quando aprendeu a gerenciar os pensamentos e proteger sua emoção.
 
A educação clássica
A ironia do destino é que ele não é inevitável, mas uma questão de escolha. Quando o Eu crê nessa tese e resolve tomar as rédeas do destino em suas mãos, sua personalidade já está estruturada e a “cidade da memória” já tem seus núcleos de habitação bem definidos. Desmontá-los, reurbanizá-los, reorganizá-los é uma tarefa possível, porém complexa. Imagine a dificuldade de reformar uma casa para entender a complexidade de reescrever nossa memória. Quem já reformou sua residência sabe o trabalho que dá.
 
Quem já fez tratamento psiquiátrico e psicoterapêutico sabe que superar conflitos não é um processo rápido como uma cirurgia. Mas, claro, não estamos de mãos atadas, podemos reciclar e reeditar as janelas traumáticas, uma tarefa que exige técnicas para o Eu se equipar como autor da própria história, o que demanda uma nova agenda, fundamentada em metas e prioridades a médio e longo prazo.
 
Por exemplo, pense numa pessoa vítima de fobia social, que tem marcante medo de falar em público. Certo dia, ela resolve virar a mesa e debater suas ideias destemidamente. Seu comportamento, por mais heroico que seja, está correto, mas, se for isolado, formará apenas janelas solitárias, e não núcleos da habitação do Eu, ou uma plataforma de janelas light.
 
Dias depois, quando enfrentar uma nova plateia, enfim, quando atravessar um novo foco de tensão, o fenômeno do gatilho terá grande chance de não conseguir encontrar, em meio a dezenas de milhares de janelas, aquela que financiou sua isolada ousadia. Mas terá grande chance de encontrar as inumeráveis janelas killer que financiavam sua insegurança, seu medo de falhar, sua preocupação excessiva com sua imagem social. Tais janelas poderão fechar o circuito da memória, aprisionando e silenciando o Eu. Reproduzindo, assim, sua fobia social. Para superá-la, todos os dias ele deve criticar e reciclar seus medos e suas preocupações. Assim formará um núcleo saudável de habitação do Eu para ser protagonista da sua história.


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