Introdução a Atos
0 livro de Atos tem um lugar único no Novo Testamento. Ele estabelece uma conexão lógica entre os Evangelhos e as epístolas. Seria muito mais difícil ler as epístolas de Paulo de modo compreensível sem o histórico fornecido pelo livro de Atos. Dois ou três exemplos da primeira epístola aos Tessalonicenses podem provar isto. Paulo diz que ele e seu companheiro tinham sido “agravados em Filipos” (1 Ts 2.2). Em Atos 16.19-24, descreve-se este vergonhoso tratamento. Novamente, Paulo escreve: “Pelo que, não podendo esperar mais, de boa mente quisemos deixar-nos ficar sós em Atenas; e enviamos Timóteo... para vos confortar e vos exortar” (1 Ts 3.1-2).
Voltando ao livro de Atos, vemos que Timóteo uniu-se ao grupo em
Listra, na segunda viagem missionária de Paulo (At 16.1-3). Também podemos ler,
no capítulo 17, como Paulo foi forçado a deixar Tessalônica e Beréia, em razão
da perseguição dos judeus, e foi a Atenas. Dali, ele enviou Timóteo de volta a
Tessalônica. O livro de Atos nos fornece, assim, o contexto histórico das
epístolas de Paulo (exceto as pastorais). E a primeira história escrita da
Igreja, embora abranja um período de cerca de apenas trinta anos (30—61 ou 62
d.C.).
Autoria
A voz universal da Igreja Primitiva declara que
o livro de Atos foi escrito por Lucas. Isto é particularmente significativo
porque Lucas é mencionado somente três vezes no Novo Testamento. Era comum, nos
séculos II e III, atribuir evangelhos apócrifos, o livro de Atos e epístolas
aos vários apóstolos, mas não a homens obscuros. Isto já é um argumento forte
em favor da autoria de Lucas para o livro de Atos.
As três referências a Lucas estão nas epístolas
de Paulo. Em Filemom 24, Paulo
inclui Lucas entre os seus “cooperadores”. Em Colossenses 4.14, ele o descreve como “Lucas, o médico amado”. E, em 2 Timóteo 4.11, ele escreve: “só Lucas está comigo”. Estes escritos mostram que Lucas era um companheiro de Paulo, médico, e que somente ele estava com Paulo nos últimos anos da vida do apóstolo — provavelmente como o seu médico.
A evidência externa para a autoria de Lucas é
adequada. A respeito do testemunho de Irineu sobre Atos, na última parte do
século II, Grant escreve: “Ele não apenas o usou, mas também forneceu a prova
clássica de que o livro foi escrito por Lucas: a informação detalhada nas
passagens “nós” (At 16.9-18; 20.5-21.18; 27.1-28.16) prova que ele foi escrito por
um companheiro de Paulo, o qual foi com ele a Roma; este companheiro deve ter
sido Lucas, na prisão em Roma (Cl 4.14), e posteriormente (2 Tm 4.11).10
Fragmento Muratório (de aprox. 200 d.C.) diz: Além disso, os atos de todos os
apóstolos são escritos em um único livro. Lucas [portanto] os reúne para o
excelentíssimo Teófilo, porque os eventos individualmente ocorreram na sua
presença — como ele mostra claramente omitindo a paixão de Pedro, como também a
partida de Paulo, quando este saiu da cidade [de Roma] em direção à Espanha.
A evidência interna, embora não tão definida, é
forte. A justificativa básica é a de
Irineu, como observado anteriormente. As passagens “nós” provam que o autor do livro de Atos era um companheiro de Paulo. Existe uma concordância universal entre os estudiosos do Novo Testamento de que estas passagens mostram tal unidade de estilo e de vocabulário com o restante do livro de Atos, o que indica que todo o livro foi claramente escrito pela mesma pessoa. Dos companheiros de Paulo mencionados destacadamente por ele nas suas epístolas, somente dois não aparecem no livro de Atos — Tito e Lucas.
Quando se trata de escolher entre estes dois,
podemos deixar que a tradição unânime da Igreja Primitiva decida o assunto em
favor de Lucas. Outra evidência interna precisa ser mencionada. Em 1882, Hobart
publicou um livro em que afirmou que existe um uso suficiente de linguagem
médica no Evangelho de Lucas e no livro de Atos, para provar que o autor destes
dois livros era um médico. Harnack, o grande estudioso alemão, apoiou
fortemente esta tese. Depois de realizar pessoalmente uma nova investigação
sobre o assunto, ele escreveu: “A evidência é de uma força estarrecedora;
parece-me que não pode haver dúvida de que o terceiro Evangelho e o livro de
Atos dos Apóstolos foram escritos por um médico”.4 Zahn declarou: “W. K. Hobart
provou, para a satisfação de quem estivesse aberto à convicção, que o autor do
trabalho de Lucas estava familiarizado com a linguagem técnica da medicina
grega e, portanto, era um médico grego”. Moffatt opinou que o estudo de Harnack
“provou isto muito conclusivamente”. A. B. Bruce, escrevendo sobre os
Evangelhos Sinóticos em The Expositor’s Greek Testament, adota a opinião de
Hobart nos seus comentários sobre o Evangelho de Lucas.
Na direção contrária a tudo isto, Cadbury afirmou que Hobart estava errado, que não existem evidências de um vocabulário médico técnico no Evangelho de Lucas, nem no livro de Atos. Ele escreveu: “E duvidoso se o interesse de Lucas pelas doenças e pelas curas excede o dos seus companheiros evangelistas ou outros contemporâneos que não eram médicos, pois as palavras que ele partilha com os escritores médicos são amplamente encontradas em outros tipos de literatura grega para podermos supor que eles apontam para qualquer vocabulário específico”. Com todo o respeito que este autor tem pelos estudos do seu antigo professor em Harvard, não é possível concordar com ele na sua afirmação. Embora Hobart se excedesse nas suas declarações, existe um inegável resíduo de evidência de que o autor do terceiro Evangelho e do livro de Atos mostra o ponto de vista de um médico. O autor concordaria com Major, que diz: “Não obstante, existem passagens nos textos de Lucas, que, embora não se possa afirmar que provem, apóiam a hipótese de que o autor era um médico”.
Semelhantemente, Wikenhauser, depois de
observar que “o argumento lingüístico por si mesmo” não prova que “somente um
médico poderia ter escrito estes dois livros”, ainda assim prossegue dizendo:
“Apesar disso, não se deve abandonar a tradição, que ainda pode ser apoiada,
pois o autor demonstra familiaridade com a terminologia médica”.
Local da Escrita
Existe uma tradição de que Lucas escreveu o
livro de Atos na Acaia (i.e., na Grécia). Mas parece ser melhor supor que ele o
escreveu em Roma, onde conclui a história (At 28.16-31).
Data
No século XIX, muitos estudiosos afirmaram que
o livro de Atos foi escrito na metade do século II. John Knox propôs esta
opinião em anos recentes. Mas ele tem poucos adeptos. Moffatt sustenta uma data
aproximadamente ao redor do ano 100.12 Mais popular é a opinião de Goodspeed e
Scott de que o livro de Atos foi escrito aproximadamente no ano 90 d.C. Os dois
homens sustentam a autoria de Lucas. Zahn julgou que o ano 75 d.C. seria a
melhor data. Por outro lado, Harnack argumentou fortemente a favor de uma data
anterior a 70 d.C., “talvez próxima ao começo da sétima década do século I”
(i.e., logo depois do ano 60 d.C.). Torrey opina que o terceiro Evangelho foi
escrito aproximadamente no ano 60 d.C., e o livro de Atos logo depois. Parece
razoável afirmar que Lucas escreveu o seu Evangelho durante os dois anos da
prisão de Paulo em Cesaréia — ou pelo menos nessa ocasião reuniu os seus
materiais — e que ele escreveu o livro de Atos enquanto Paulo passava dois anos
aprisionado em Roma. Esta é a dedução mais natural com base no fato de que a
história termina naquele ponto. Isto fixaria a data do livro ao redor do ano 62
d.C.
Propósito
A escola Tuebingen de críticos na Alemanha, na última parte do século XIX, sustentou que o objetivo do livro de Atos era o de reconciliar os grupos de Paulo e de Pedro na igreja, os quais estavam em clima de batalha. Mas esta teoria “tendencial” foi largamente abandonada à luz das últimas pesquisas. Na verdade, Henshaw chega a ponto de dizer: “As investigações agora refutam completamente a teoria”. Normalmente, os estudiosos da atualidade sustentam que o prefácio do Evangelho de Lucas (1.1-4) também se aplica ao livro de Atos. Se este for o caso, o primeiro propósito seria, como já afirmamos aqui, que Teófilo pudesse conhecer “a certeza das coisas” de que já estava “informado”.
Uma leitura do mesmo livro parece apoiar
claramente a afirmação de Clogg de que o objetivo de Lucas era mostrar:
(1) o poder possuído pelos apóstolos por meio
do Espírito Santo...
(2) a expansão gradual da igreja, em parte em
números, por meio do poder dos apóstolos, em parte em extensão geográfica”.
Kirsopp
e Silva Lake sugerem um objetivo triplo, que talvez forme uma afirmação mais
adequada do caso. Eles afirmam que entre os motivos para escrever o livro
estavam:
(a) Um desejo de provar a inspiração e a
orientação sobrenatural dadas à igreja no dia de Pentecostes... (b) Um desejo
de mostrar que os melhores magistrados romanos nunca tomaram nenhuma decisão
contra os cristãos... (c) Um desejo puramente histórico de mostrar como a
igreja deixou de ser judia e tornou-se grega, porque os judeus rejeitaram a
mensagem da salvação, porém os gregos a aceitaram.20
O texto
Há uma coisa que deve ser dita sobre o texto do
livro de Atos. Ele tem características peculiares não encontradas em nenhum
outro livro do Novo Testamento.
Quatro tipos de textos do Novo Testamento são
normalmente distinguidos pelos estudiosos.
O primeiro é o Texto Bizantino, encontrado no
volume dos últimos manuscritos.
Este foi a base do assim chamado Textus
Receptus (Texto Recebido) usado pelos tradutores da Versão King James em
inglês. A opinião quase universal é que este é o texto grego mais pobre.
O melhor texto é o que Westcott e Hort chamaram
de Texto Neutro (não editado).
Este nome foi amplamente abandonado na
atualidade em favor de uma designação mais exata, a do Texto Alexandrino. Em
geral, isto é o que é encontrado nos dois grandes manuscritos do século IV, o
Vaticano e o Sinaítico. Somente os manuscritos em papiro de partes do Novo
Testamento são mais antigos do que estes. Os tradutores modernos usaram este
texto com base nos manuscritos mais antigos.
O terceiro texto é conhecido como o Texto
Ocidental. E encontrado no Codex Bezae (designado como D), do século V, e
também na antiga versão em Latim da África do Norte.
A quarta família, mais recentemente isolada pelos estudiosos, é chamada de texto Cesareano. Mas ela não é particularmente significativa para o estudo do livro de Atos.
No livro de Atos, o texto Ocidental é caracterizado por longas leituras que não são encontradas no texto Alexandrino. O grande problema que os estudiosos textuais enfrentam é saber qual destas leituras pode ser genuína, se é que alguma realmente o pode. Algumas provavelmente representam tradições autênticas. Mas parece improvável que alguma pertença, na verdade, ao texto original. Uma comparação completa dos textos de Atos de Vaticano e de Bezae, com copiosas observações, poderá ser encontrada no volume III de Beginnings of Christianity.
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