Como pode existir o mal, se Deus é onipotente e
totalmente bom? Esta pergunta, juntamente com a questão correlata a respeito da
origem do mal, é o fantasma que assombra todas as tentativas de se compreender
o pecado. Antes de continuarmos este estudo, façamos uma distinção entre
algumas formas do mal. O mal moral - ou pecado - é a iniqüidade cometida por
criaturas dotadas de vontade. (O mal natural é a desordem e decadência do
Universo) (calamidades naturais, algumas doenças etc.). Está ligado à maldição
que Deus pronunciou contra a terra (Gn 3.17,18).
O mal metafísico é aquele involuntário,
resultante da finitude das criaturas (insuficiência mental e física etc.). A
Bíblia afirma a perfeição moral de Deus (Sl 100.5; Mc 10.18) e o seu poder Mt
19.26). Foi Ele só quem criou (Gn 1.1, 2; Jo 1.1-3), e tudo quanto Ele criou
era bom (Gn 1; Ec 7.29). Ele não criou o mal, a que odeia (Sl 7.11; Rm 1.18).
Ele não tenta, nem é tentado (Tg 1.13). Apesar disso, dois textos bíblicos que
parecem contradizer esse fato devem ser considerados. Isaías 45.7 diz que Deus cria
o mal (ARC). Mas ra' (“mal”) também possui um sentido que nada tem que ver com
a moralidade (Gn 47.9) ou apresenta-se como antônimo de “paz” (Am 6.3). Pode
significar também “desventura”, “calamidade”, “desgraça”, palavras que neste
contexto são boas traduções. Deus, portanto, traz o julgamento moral, mas não o
mal imoral. O fato de Deus endurecer ou cegar as pessoas também levanta
dúvidas. Pode tratar-se de uma “entrega” passiva em que Deus simplesmente deixa
as pessoas viverem conforme desejam (Sl 81.12; Rm 1. 18-28; 1Tm 4-1,2) ou uma
imposição ativa de endurecimento a pessoas que já assumiram um compromisso
irrevogável
com o mal (Êx 1.8-15,21; Dt 2.30; Js 11.20; Is
6.9,10; 2Co 3.14,15; Ef 4.17-19; 2Ts 2.9,12). Observe o exemplo de Faraó (Êx
1.8-15,21). Ele não foi criado com o propósito de ser endurecido (o que pode
sugerir uma leitura superficial de Romanos 9.17: “... te levantei”). O verbo
hebraico 'amad e seu equivalente na Septuaginta (LXX), diatereõ (Êx 9.16),
referem-se a posição ou categoria (e não à criação), fato este que está dentro
do alcance semântico de exegeirõ (Rm 9.17). Faraó já mereceu o castigo divino
quando rejeitou a petição de Moisés pela primeira vez (Êx 5.2). Deus, porém, o
preservou, para ser glorificado através do rei egípcio. Inicialmente, Deus
apenas predisse o endurecimento do coração de Faraó (Êx 4.21, heb. 'achazzeq,
“tornarei forte”; Êx 7-3, heb. 'aqsheh, “tornarei pesado”, ou seja, difícil de
ser movido).
Antes de Deus agir, no entanto, Faraó endureceu
seu próprio coração (implicitamente, Êx 1.8-22; 5.2; e explicitamente, Êx
7.13,14). O coração de Faraó “endureceu-se” (literalmente “tornou-se forte”),
aparentemente um modo de reagir ao milagre que removeu a praga, e Deus disse
que o coração de Faraó não cedia (heb. Kavedh, “estar pesado”, Êx 7.22,23;
8.15,32; 9.7). Faraó, então, continuou o processo (Êx 9.34,35) com a ajuda e
Deus (Êx 9.12; 10.1,20,27; 11.10; 14.4,8,17). Esse sistema está explícito em outros
casos ou é compatível com eles e com a santa justiça de Deus (Rm 1.18). Por
isso Deus pode acelerar a pecaminosidade deliberada, visando seus próprios
propósitos (Sl 105.25), mas os pecadores continuam arcando com a
responsabilidade (Rm 1.20). Deus não criou o mal, porém realmente criou tudo
que existe. Assim, o mal não pode ter uma existência independente. O mal é a
ausência ou a perversão do bem. Este fato pode ser ilustrado pelo sal de
cozinha, que é um composto (ou mistura compacta) de duas matérias químicas: o
sódio e o cloreto. Estes dois elementos, em separado, são altamente mortíferos.
O sódio irrompe em chamas ao entrar em contato com a água, e o cloro é um
veneno fatal. Assim como a alteração na composição do sal, a criação perfeita
de Deus é mortífera quando o pecado lhe estraga o equilíbrio. Das quedas de
Satanás e de Adão surge todo o mal. Por isso, o mal natural provém do mal
moral. Todas as doenças provêm, em última análise, do mal, porém não
necessariamente do pecado daquele que está enfermo ao (Jo 9.1-3), embora este
possa ser o caso (Sl 107.17; Is 3.17; At 12.23).
A grande ironia de Gênesis 1.3 é que tanto Deus
quanto Satanás empregam a linguagem: Deus, num gesto criador, para trazer à
existência a realidade e a ordem ex nihilo; e Satanás, de modo imitativo, para
trazer engano e desordem. O mal depende do bem, e a obra de Satanás não passa
de imitação. Por ter Deus a capacidade de impedir o mal (isolando a árvore, por
exemplo) e não o ter feito, e, por saber o que aconteceria, parece que Ele
permitiu que o mal surgisse (isto é muito diferente de causá-lo). Segue-se que
o Deus Santo viu que do permitir o mal surgiria um maior bem. Eis algumas
sugestões quanto à natureza desse bem: • Que a humanidade amadureceria através
do sofrimento (cf. Hb 5.7-9); • Que as pessoas poderiam amar a Deus livre e
sinceramente, uma vez que tamanho amor só pode existir onde houver a
possibilidade do ódio e do pecado; • Que as maneiras como Deus se expressa
seriam impossíveis de outra forma (tais como seu ódio ao mal, Rm 9.22, e seu
amor gracioso aos pecadores, Ef 2.7).
Todos esses pontos de vista têm sua validade.
Descrever o pecado é uma tarefa difícil. Talvez a dificuldade provenha da sua
natureza parasítica, posto que não tem existência em separado, mas é
condicionado por aquilo a que se agarra. Mesmo assim, delineia-se nas
Escrituras uma imagem - algo camaleônica - da existência derivada do pecado. Há
muitas sugestões a respeito da essência do pecado: a incredulidade, o orgulho,
o egoísmo, a rebelião, a corrupção moral, a luta entre a carne e o espírito, a
idolatria e combinações entre todos esses itens. Embora todas essas idéias
sejam informativas, nenhuma delas caracteriza a totalidade dos pecados (os
pecados da ignorância, por exemplo) nem explica adequadamente o pecado como
natureza (a pecaminosidade).
De modo mais significativo, todas definem o
pecado. em termos de pecadores, que são muitos, variados e imperfeitos. Parece
preferível definir o pecado como algo cometido contra Deus. Somente Ele é uno,
consistente e absoluto, e a qualidade perversa e iníqua do pecado é revelada
contra o pano de fundo de sua santidade. Talvez a melhor definição do pecado
seja a encontrada em 1 João 3.4: “O pecado é iniqüidade”. Seja o que mais o
pecado for, ele é, no seu âmago, uma violação da lei de Deus. E, já que “toda a
iniqüidade [gr. adikia, literalmente “injustiça”] é pecado” (1Jo 5.17), toda
injustiça quebra a lei de Deus. Por isso, Davi confessa: “Contra ti, contra ti
somente pequei” (Sl 51.4; cf. Lc 15. 18,2 1). Além disso, a transgressão
provoca a separação entre a pessoa e o Deus da vida e da santidade, que
necessariamente resulta na corrupção (inclusive a morte) da natureza humana
finita e dependente. Logo, essa definição do pecado é bíblica, exata, e abrange
todos os tipos do pecado; explica os efeitos do pecado sobre a natureza; e tem
Deus (e não a humanidade) como ponto de referência. Isto é, reconhecemos a
verdadeira natureza do pecado ao observarmos seu contraste com Deus, e não por
meio de comparar seus efeitos entre os seres humanos.
Embora os crentes não estejam debaixo da lei
mosaica, ainda existem padrões objetivos, passíveis de serem violados (Jo 4.21;
1Jo 5.3; os muitos regulamentos nas epístolas). Por causa da incapacidade
humana de cumprir a Lei, somente um relacionamento com Cristo pode suprir a
expiação para apagar o pecado e o poder para viver uma vida segundo a vontade
de Deus. O crente que ainda peca precisa confessar e, se possível, fazer
restituição, não visando a absolvição, mas para reafirmar seu relacionamento
com Cristo. É essa fé que sempre se contrasta com a “justiça segundo as obras”
(Hc 2.4; Rm 1.17; Gl 3.11; Hb 10.38), de modo que tudo quanto não é de fé é
pecado (Rm 14.23; cf. Tt 1.15; Hb 11.6). Por isso, o pecado - nos crentes ou
nos incrédulos, antes ou depois da crucificação - é sempre a violação da Lei, e
a única solução é a fé em Cristo. Não se define o pecado por sentimentos, nem
por filosofias, mas somente por Deus, na sua lei, no seu desejo e na sua
vontade. É nas Escrituras que descobrimos esse fato de modo mais concreto.
Embora, na melhor das hipóteses, o coração do
crente (no seu sentido mais lato) perceba o que é o pecado (Rm 2.13 - 15; 1Jo
3.21), sua sensibilidade espiritual para com o bem e o mal precisa ser
aprimorada (Hb 5.14). O coração tem sido desesperançosamente corrupto (Jr 17.9)
e pode ser cauterizado (1Tm 4.2). Pode, também, sentir falsa culpa (1Jo 3.20).
Assim, os sentimentos subjetivos jamais devem ser colocados acima da Palavra
objetiva e escrita de Deus. Nem por isso, entretanto, devemos deixar de ser espiritualmente
sensíveis. A idéia do pecado como uma violação da lei está embutida na própria
linguagem das Escrituras. O grupo de palavras hebraicas representado por
chatta’th (o assunto do pecado tem a idéia básica de “errar o alvo” Jz 20.16;
Pv 19.2). Essa idéia de alvo - ou padrão objetivo - permite a referência aos
pecados deliberados (Êx 10.17; Dt 9.18; Sl 25.7), a uma realidade externa do
pecado (Gn 4.7), a um padrão sistemático do pecado (Gn 18.20; 1Rs 8.36), aos
erros (Lv 4.2) e às ofertas exigidas por causa dos pecados (Lv 4.8). 'Awon
(“iniqüidade”), proveniente da idéia de ser “torto” ou “pervertido”, refere-se
a pecados graves e muitas vezes forma um paralelo com chatta'th (Is 43.24).
O verbo 'avar fala em ir além de uma fronteira
e, portanto (metaforicamente), da transgressão (Nm 14.41; Dt 17.2). Resha' pode
referir-se a coisa errada (Pv 11.10) ou à injustiça (Pv 28.3,4). Um grupo de
palavras gregas representado por hamartia é usado para o conceito genérico de
pecado no Novo Testamento. Tem o sentido básico de “errar o alvo” (assim como
em chatta’th), e é um termo amplo, originalmente sem conotação moral. No Novo
Testamento, porém, refere-se a pecados específicos (Mc 1.5; At 2.38; Gl 1.4; Hb
10.12) e ao pecado como uma força (Rm 6.6,12; Hb 12.1). Anomia (gr. nomos,
“lei”, mais o prefixo negativo a - “sem lei”, “ilegalidade”, “iniqüidade”) e
seus termos correlatos representam provavelmente a linguagem mais contundente
para o pecado. O adjetivo e o advérbio talvez se refiram àqueles que não têm a
Torá (Rm 2.12; 1Co 9.21), mas a palavra usualmente identifica qualquer pessoa
que violou alguma lei divina (Mt 7.23; 1Jo 3.4). E, também, “injustiça” de 2
Tessalonicenses 2.7-12. Outro termo para o pecado, adikia, é mais literalmente
traduzido por “ilegalidade” (mais comumente “iniqüidade”, em nossas Bíblias) e
varia desde um mero engano até violações grosseiras da lei. É grande injustiça
(2Pe 2.13-15) e contrasta-se com a justiça (Rm 6.13). Parabasis (“passar além”,
“transgressão”) e seus derivados indicam o violar um padrão. A palavra descreve
a Queda (Rm 5.14; cf 1Tm 2.14), a transgressão da lei como pecado (Tg 2.9,11) e
a perda do apostolado de Judas (At 1.25). Asebeia (“impiedade” - o prefixo negativo
a com sebomai [“reverenciar”, “adorar” etc.]), sugere uma insensibilidade
espiritual que resulta em pecado grosseiro (Jd 4) e grande condenação (1Pe
4.18; 2Pe 2.5;3.7). A idéia do pecado como quebra de lei e como desordem
evidencia um contraste marcante com o Deus pessoal que, pela sua palavra,
trouxe à existência um mundo ordeiro e bom. A própria idéia de uma
personalidade (humana ou divina) exige ordem. A ausência desta dá origem ao
termo técnico “desordem da personalidade”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário