O pecado original - Uma análise teológica

 

O pecado original

 

Uma análise teológica


Muitas tentativas foram feitas para construir um modelo ou teoria teológica que encaixassem esses parâmetros complexos. Algumas das teorias mais relevantes são consideradas aqui. A doutrina do pecado original se apoia em várias passagens das Escrituras: a epístola de Paulo aos Romanos (5:12-21) e aos Coríntios (1 Co 15:22), e uma passagem do Salmo 51. Mas a primeira exposição sistemática sobre o pecado original — de cuja interpretação derivaram todas as controvérsias — é a de Agostinho de Hipona, no século IV.[4] Foi também no século IV que se deu a conversão do Império Romano ao cristianismo. Segundo Le Goff, o dogma do pecado original teria contribuído para aumentar o poder de controle da Igreja sobre a vida sexual, na Idade Média.

 

Conceitos Judaicos

Três correntes principais são identificadas no judaísmo. A teoria predominante é a das duas naturezas: a boa - yetser tov - e a má - yetser ra' (cf. Gn 6.5; 8.21). Os rabinos debatiam sobre a idade em que esses impulsos se manifestam, e se o impulso mau é realmente iniqüidade ou apenas instinto natural. Seja como for, os maus são controlados pelo impulso mau, ao passo que os bons o controlam. A segunda teoria diz respeito aos “vigilantes” (Gn 6.1-4), anjos cujo dever era fiscalizar a humanidade mas que acabaram pecando com as mulheres. Finalmente, há conceitos de pecado original que antecipam o Cristianismo. Mais dramaticamente, o Midrash explica, por analogia, a morte do justo Moisés. Uma criança pergunta ao rei por que ela está na prisão. O soberano responde que é por causa do pecado da mãe dela. Semelhantemente, Moisés morreu por causa do primeiro homem que trouxe a morte ao mundo. Resumindo, o pecado original não é inovação paulina. Pelo contrário, Paulo, inspirado pelo Espírito Santo, desenvolveu-o de conformidade com a revelação progressiva.

 

O Agnosticismo

Há os que sustentam não haver evidências bíblicas suficientes para uma teoria detalhada do pecado original. Qualquer assertiva quanto a pecaminosidade que vá além de uma conexão entre Adão e a raça humana é considerada especulação filosófica. Embora esteja correto que a doutrina não deve basear-se em especulações extrabíblicas, é válida a dedução das Escrituras.

 

O Pelagianismo

O pelagianismo enfatiza fortemente a responsabilidade pessoal na oposição à frouxidão moral. Pelágio (de 361 - de 420 d.C.) ensinava que a justiça de Deus não permitiria a transferência do pecado de Adão a outras pessoas e que, portanto, todas as pessoas nascem sem pecado e com total livre-arbítrio. O pecado é disseminado exclusivamente pelo mau exemplo. Por isso há uma possibilidade real de vidas sem pecado, e elas se acham dentro e fora da Bíblia. Tudo isso, porém, é antibíblico, além de anular as conexões que a Bíblia faz entre Adão e a humanidade. A morte de Cristo é reduzida tão-somente a bom exemplo. A salvação fica sendo meramente boas obras. A vida nova em Cristo não passa da antiga disciplina. Embora o pelagianismo tenha razão quando enfatiza a responsabilidade

 

O Semipelagianismo

O semipelagianismo sustenta que, embora a humanidade tenha se enfraquecido com a natureza de Adão, sobrou livre-arbítrio suficiente para a iniciativa de ter fé em Deus, e então Ele corresponderá. A natureza enfraquecida é transmitida naturalmente a partir de Adão. Porém, como se sustenta à justiça de Deus após permitir que pessoas inocentes recebam uma natureza maculada e como é salvaguardada a natureza impecável de Cristo, ainda não foi bem explicado. Mais importante, em algumas formulações o semipelagianismo ensina que, embora a natureza humana esteja tão enfraquecida pela Queda, a ponto de ser inevitável que as pessoas pequem, a bondade inerente que possuem é suficiente para iniciar a verdadeira fé.

 

A Transmissão Natural ou Genética

Essa teoria sustenta que a transmissão da natureza corrupta baseia-se na lei da herança. Toma por certo que as características espirituais são transmitidas da mesma forma que as naturais. Tais teorias mencionam usualmente a transmissão da natureza corrompida, mas não a da culpa. Mesmo assim, não parece haver base adequada para Deus infligir numa alma virtuosa uma natureza corrupta. Nem está claro como Cristo pode ter uma natureza plenamente humana e ao mesmo tempo livre do pecado.

 

A Imputação Mediada

A imputação mediada entende que Deus imputou culpa aos descendentes de Adão por meios indiretos, ou mediados. O pecado de Adão o fez culpado e, como castigo, Deus corrompeu-lhe a natureza. E, como ninguém da sua posteridade tomou parte na sua ação, nenhum de seus descendentes é culpado. Mesmo assim, recebem a sua natureza como conseqüência natural de serem descendentes dele (não como julgamento). Porém, antes de cometerem qualquer pecado real ou pessoal (que a sua natureza necessita), Deus os julga culpados de possuir aquela natureza corrompida. Infelizmente, essa tentativa de proteger Deus da inflição injusta da “culpa exclusiva” de Adão à humanidade resulta em acusar Deus de uma injustiça ainda maior - permitir que a corrupção, causadora do pecado, enfraqueça pessoas destituídas de culpa e depois julgá-las culpadas dessa mesma corrupção.

 

O Realismo

O realismo e o federalismo (ver abaixo) são as teorias mais importantes. O realismo sustenta que o “tecido da alma” de todas as pessoas estava real e pessoalmente em Adão (“seminalmente presente”, segundo o conceito traduciano da origem da alma), participando de fato do seu pecado. Cada pessoa é culpada porque, na realidade, cada uma pecou. A natureza da pessoa passa então a ser corrompida por Deus, como julgamento contra aquele pecado.

Não há transmissão de pecado, mas a participação total da raça naquele primeiro pecado. Agostinho (354-430) aperfeiçoou a teoria, dizendo que a corrupção era transmitida mediante o ato sexual. Assim, conseguia manter Cristo livre do pecado original, porque Ele nasceu de uma virgem. W. G. T. Shedd (1820-1994) acrescenta um argumento mais sofisticado: por baixo da vontade das escolhas de todos os dias há a vontade profunda, a “vontade propriamente dita”, que determina a direção que a pessoa segue em última análise. Foi essa vontade profunda que realmente pecou em Adão.

O realismo tem pontos fortes. Não apresenta o problema da culpa de terceiros, a solidariedade de Adão e da raça no pecado daquele é levada a sério e parece bem explicada a expressão “todos pecaram”, de Romanos 5.12. Apresenta, no entanto, alguns problemas. O realismo possui todas as fraquezas do traducianismo extremo. O tipo de presença pessoal necessária em Adão e Eva distorce até mesmo Hebreus 7.9,10 (cf. Gn 46.26), a passagem clássica traducianista. A expressão “para assim dizer” (Hb 7.9), em grego, sugere seja entendido figuradamente o que se segue. Idéias como a de uma “vontade profunda” tendem a exigir e pressupor um conceito determinista, calvinista, da salvação.

O realismo por si só não pode explicar porque ou em que base Deus amaldiçoa a terra. Portanto, torna-se necessário algo como a aliança. Para a humanidade de Jesus ser isenta de pecado, Ele deve ter cometido o primeiro pecado em Adão, sendo posteriormente purificado; ou Ele não estava mesmo presente em Adão; ou Ele estava presente mas não pecou, e seus antepassados humanos diretos permaneceram sem pecado em suas gerações.

Cada uma dessas opiniões apresenta dificuldades (uma alternativa é sugerida adiante). A idéia de que todos pecaram pessoalmente parece contradizer o conceito de que o pecado de um só homem faz de todos pecadores (Rm 5.12,15-19). Posto que todos pecaram em Adão, com Adão e como Adão, sugere terem pecado segundo o padrão do primeiro homem, o que contraria 5.14.

 

O Federalismo

A teoria federal da transmissão sustenta que a corrupção e a culpa se estendem a toda a humanidade porque Adão era a cabeça da raça num sentido representativo, governamental ou federal quando pecou. Toda pessoa está sujeita à aliança entre Adão e Deus (a aliança adâmica - ou aliança das obras - por contraste à aliança da graça). Faz-se uma analogia com uma nação que declara guerra. Seus cidadãos sofrem, quer concordem com ela ou a condenem e mesmo sem terem participado da decisão. Os descendentes de Adão não estão pessoalmente culpados até realmente pecarem, mas vivem um estado de culpa e são passíveis do inferno por ter-lhes sido imputado - de conformidade com a aliança - o pecado de Adão.

Por causa desse estado, Deus os castiga com a corrupção. Muitos federalistas, portanto, distinguem entre o pecado herdado (a corrupção) e o imputado (a culpa) da parte de Adão. A maioria dos federalistas são criacionistas no tocante à origem da alma, mas o federalismo não é incompatível com o traducianismo. A aliança com Adão incluía sua posição de despenseiro da criação - a base perfeita para Deus amaldiçoar a terra. Cristo, como cabeça de uma nova aliança e de uma nova raça, está isento do julgamento da corrupção sendo, portanto, impecável. O federalismo tem pontos fortes.

A aliança, como base bíblica para a transmissão do pecado, concorda razoavelmente com Romanos 5.12-21 e fornece mecanismos para a maldição da terra e para proteger Cristo do pecado. No entanto, apresenta algumas fraquezas. Romanos 7 deve descrever somente o conhecimento que Paulo tomou de sua própria natureza pecaminosa, e não a experiência física do pecado que o matava. Mais importante que isso, a transmissão da “culpa exclusiva” de Adão é freqüentemente considerada injusta.

 

Uma Teoria Integrada

Várias das teorias acima podem ser combinadas para formar uma abordagem integrada, resultando numa teoria que faz distinção entre a pessoa individual e a natureza pecaminosa da carne. Quando Adão pecou separou-se de Deus, e isto produziu nele - como indivíduo e na sua natureza - a corrupção (inclusive a morte). Pelo fato de ele conter toda a natureza genérica, ela toda ficou corrompida. A natureza genérica é transmitida naturalmente ao aspecto individual da pessoa, o “próprio-eu” (como em Rm 7).

A aliança adâmica é a justa base dessa transmissão e também da maldição contra a terra. O “eu” não é corrompido nem culpado por causa da natureza genérica, mas a natureza genérica o impede de agradar a Deus (Jo 14.21; 1Jo 5.3). Ao chegar à idade da responsabilidade pessoal, o “eu”, lutando contra a natureza, ou corresponde à graça proveniente de Deus na salvação ou realmente peca ao desconsiderá-la, de modo que o mesmo “eu” fica separado de Deus, tornando-se culpado e corrupto.

Deus continua estendendo a mão para o “eu” mediante a graça proveniente. Logo, Romanos 5.12 pode dizer que “todos pecaram” e que todos estão corrompidos e necessitando de salvação, mas nenhuma culpa é infligida àqueles que ainda não pecaram na realidade. Isto é consistente com a luta descrita em Romanos 7. Nem todas as pessoas pecam da mesma forma que Adão (Rm 5.14), mas o pecado de um só homem realmente traz a morte e transforma todos em pecadores. E o faz mediante a aliança adâmica, um mecanismo paralelo à obra de Cristo, que é tornar justos os pecadores (Rm 5.12-21).

Evita-se o semipelagianismo extremado, porque o “eu” é capaz de reconhecer a sua necessidade mas não pode agir com fé por causa da natureza humana genérica (Tg 2.26). Sendo o ficar separado de Deus a causa da corrupção, a união entre Cristo e sua parte da natureza genérica restaurada à santidade. Por ter o Espírito Santo chegado a Maria na concepção do “eu” humano de Cristo, este era pré-responsável e, portanto, impecável. Essa disposição é justa, pois Cristo é o cabeça de uma nova aliança.

Semelhantemente, a união entre o Espírito Santo e o crente na salvação é regeneradora. Embora as Escrituras não afirmem explicitamente que a aliança é a base para a transmissão, há muitas evidências em favor dessa idéia. As alianças fazem parte fundamental do plano de Deus (Gn 6.18; 9-9-17; 15.18; 17.2-21; Êx 34.27, 28; Jr 31.31; Hb 8.6,13; 12.24). Houve uma aliança entre Deus e Adão. Oséias 6.7 - “Mas eles traspassaram o concerto, como Adão” - refere-se muito provavelmente a essa aliança, uma vez que a tradução alternativa (“homens”, NIV) é tautológica. Hebreus 8.7, que diz ter sido a aliança com Israel à primeira, não exclui a aliança com Adão, pois o contexto indica que se trata da primeira aliança entre Deus e Israel (e não com a humanidade inteira).

E há uma aliança (a Bíblia ARC emprega “pacto”, “concerto” e “aliança” como sinônimos) explícita anterior, com Noé (Gn 6.18; 9.9- 17). As alianças bíblicas são obrigatórias às gerações futuras, quer para o bem (Noé, Gn 6.18; 9.9-17 quer para o mal Josué e os gibeonitas, Js 9.15). As alianças são freqüentemente a única base observável para o julgamento (os israelitas que morreram em ai por causa do pecado de Acã em Jericó, Js 7; o sofrimento dos súditos de Davi porque este os numerou, 2Sm 24).

A circuncisão segundo a aliança podia até mesmo acolher crianças estrangeiras na nação de Israel. Alguns estudiosos objetam que qualquer teoria que transmita a outras alguma conseqüência do pecado de Adão é inerentemente injusta, pois lhe imputa o pecado sem fundamento nem base. (Somente o pelagianismo evita totalmente essa objeção, ao tornar todos os seres humanos pessoalmente responsáveis. O “pecado pré[1]consciente” do realismo detém a maioria das dificuldades). As alianças, no entanto, constituem base justa para esse tipo de transmissão, pelas seguintes razões: os descendentes de Adão teriam sido tão abençoados por causa do seu bom comportamento como foram amaldiçoados por suas obras más; a aliança certamente é mais justa que a mera transmissão genética; a culpa e as conseqüências transmitidas pelo concerto são semelhantes aos pecados da ignorância (Gn 20).

Há também o argumento de que Deuteronômio 24.16 e Ezequiel 18.20 proíbem o julgamento de uma geração para outra. Mas outros textos mencionam julgamentos assim (os primogênitos do Egito; Moabe; Êx 20.5; 34.6,7; Jr 32.18). É possível, no entanto, que os dois textos acima se refiram à chefia biológica como base insuficiente para transmissão de julgamento, ao passo que os textos mencionados entre parênteses referem-se a uma base pactuar, adequada à transmissão do julgamento. Alternativamente, segundo a teoria integrada, se a natureza corrompida não é um juízo positivo de Deus, a execução de um castigo pelo pecado do pai realmente não ocorre.

Finalmente, quem, mesmo sem corrupção e dentro do jardim perfeito, se comportaria melhor que Adão, quanto à obediência aos mandamentos de Deus? E, sem dúvida, a suposta “injustiça” do pecado imputado é mais que contrabalançada pelo dom gratuito da salvação em Jesus Cristo, oferecido a todos livremente . Embora seja especulativa e não sem algumas dificuldades, uma teoria integrada que utilize a aliança parece explicar boa parte dos dados bíblicos e talvez sugira uma terceira alternativa às teorias predominantes do realismo e do federalismo.


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