D. Atributos de
Soberania
A soberania de Deus recebe forte ênfase na Escritura. Ele é apresentado como o Criador, e Sua vontade como a causa de todas as coisas. Em virtude de Sua obra criadora, o céu, aterra e tudo o que eles contêm Lhe pertencem. Ele está revestido de autoridade absoluta sobre as hostes celestiais e sobre os moradores da terra. Ele sustenta todas as coisas com a Sua onipotência, e determina os fins que elas estão destinadas a cumprir. Ele governa como Rei no sentido mais absoluto da palavra, e todas as coisas dependem dele e Lhe são subservientes.
As provas bíblicas da soberania de Deus são
abundantes, mas aqui nos limitaremos a referir-nos a algumas das passagens mais
significativas: Gn 14.19; Ex 18.11; Dt 10.14, 17; 1 Cr 29.11, 12; 2 Cr 20.6; Ne
9.6; Sl 22.28; 47.2, 3, 7, 8; Sl 50.10-12; 95.3-5; 115.3; 135.5, 6; 145.11-13;
Jr 27.5; Lc 1.53; At 17.24-26; Ap 19.6. Dois dos atributos requerem discussão
sob este título, a saber, (1) a vontade soberana de Deus, e (2) o poder
soberano de Deus.
1. A VONTADE SOBERANA DE DEUS.
a. A vontade de Deus em geral. A Bíblia emprega
várias palavras para indicar a vontade de Deus, a saber, as palavras hebraicas
chaphets, tsebhu e raston, e as palavras gregas boule e thelema. A importância
da vontade divina aparece de várias maneiras na Escritura. É apresentada como a
causa final de todas as coisas. Tudo é derivado dela: a criação e a
preservação, Sl 135.6; Jr 18.6; Ap 4.11; o governo, Pv 21.1; Dn 4.35; a eleição
e a reprovação, Rm 9.15, 16; Ef 1.11; os sofrimentos de Cristo, Lc 22.42; At 2.23;
a regeneração, Tg 1.18; a santificação, Fp 2.13; os sofrimentos dos crentes, 1
Pe 3.17; a vida e o destino do homem. At 18.21; Rm 15.32; Tg 4.15, e até as
menores coisas da vida, Mt 10.29. Daí, a teologia cristã sempre reconheceu a
vontade de Deus como a causa última de todas as coisas, embora a filosofia às
vezes mostre uma inclinação para procurar uma causa mais profunda no próprio
Ser do Absoluto. Todavia, a tentativa de fundamentar tudo no próprio Ser de
Deus geralmente redunda em panteísmo.
A palavra “vontade”, no sentido em que é
aplicada a Deus, nem sempre tem a mesma conotação na Escritura. Pode denotar:
(1) toda a natureza moral de Deus, incluindo
atributos como amor, santidade, justiça, etc;
(2) a
faculdade de auto-determinação, isto é, o poder de determinar que o Eu siga um
curso de ação ou formule um plano;
(3) o produto desta atividade, isto é, o plano
ou propósito predeterminado;
(4) o poder de executar este plano e de
realizar este propósito (a vontade em ação, ou seja, a onipotência);
(5) a regra de vida firmada para as criaturas
racionais.
É primariamente na vontade de Deus como a
faculdade de autodeterminação que estamos interessados no momento. Esta pode
ser definida como a perfeição do Seu Ser pela qual Ele, num ato sumamente
simples, dirige-se a Si mesmo como o Sumo Bem (isto é, deleita-se em Si mesmo
como tal) e as Suas criaturas por amor do Seu nome e, assim, é a base do ser e
da continuada existência delas. Com referência ao universo e a todas as
criaturas que ele contém, isto naturalmente inclui a idéia de causação.
b. Distinções aplicadas à vontade de
Deus.
Têm-se aplicado várias distinções à vontade de Deus. Algumas destas encontraram
pouco apoio da parte da teologia reformada, calvinista, como aconteceu com a
distinção entre uma vontade de Deus antecedente e uma vontade conseqüente, e
com a distinção entre uma vontade absoluta e uma condicional. Estas distinções
não somente estavam expostas a uma compreensão errônea, mas de fato foram
interpretadas de maneiras passíveis de objeção. Outras, porém, foram
consideradas úteis e, portanto, foram aceitas mais geralmente.
Estas podem ser asseveradas como segue:
(1) A vontade decretatória de Deus e Sua
vontade preceptiva. A primeira é a vontade de Deus pela qual ele projeta ou
decreta tudo que virá a acontecer, quer pretenda realiza-lo efetivamente
(causativamente), quer permita que venha a ocorrer por meio da livre ação das
Suas criaturas racionais. A segunda é a regra de vida que Deus firmou para as
Suas criaturas morais, indicando os deveres que lhes impõe. A primeira é
realizada sempre, ao passo que a segunda é desobedecida com freqüência.
(2) A vontade de eudokia e a vontade de
eurestia. Esta divisão não se relaciona tanto com o propósito de fazer algo,
mas principalmente com o prazer de fazer algo ou com o desejo de ver alguma
coisa feita. Contudo, corresponde à divisão anterior, no fato de que a vontade
de eudokia, como a do decreto, compreende aquilo que será realizado com
certeza, enquanto que a vontade de eurestia, como a do preceito, abrange
simplesmente o que Deus apraz que as Suas criaturas façam. A palavra eudokia só
se refere ao bem, e não ao mal; cf. Mt 11.26; É incorreto dizer que o elemento
de complacência ou deleite está sempre presente nela.
(3) A vontade do beneplacitum e a vontade do
signum. Aquela de novo denota a vontade de Deus como incorporada em Seu
conselho oculto, enquanto não o torna conhecido por alguma revelação ou pelo
próprio evento. Toda e qualquer vontade revelada torna-se um signum. Esta
distinção visa a corresponder à que se faz entre a vontade decretatória de Deus
e Sua vontade preceptiva, mas dificilmente se pode dizer que o faça. O
beneplácito de Deus também acha expressão em Sua vontade preceptiva; e a
decretatória às vezes também chega ao nosso conhecimento por meio de um signum.
(4) A vontade secreta de Deus e Sua vontade
revelada. Esta distinção é a mais comum. A primeira é a vontade do decreto de
Deus, em grande medida oculta em Deus, enquanto que a segunda é a vontade do
preceito, revelada na Lei e no Evangelho. A distinção baseia-se em Dt 29.29. A
vontade secreta de Deus é mencionada em Sl 115.3; Dn 4.17, 25, 32, 35; Rm 9.18,
19; 11.33, 34; Ef 1.5, 9, 11; e Sua vontade revelada, em Mt 7.21; 12.50; Jo
4.34; 7.17; Rm 12.2. Esta última é acessível a todos, e não está longe de nós,
Dt 30.14; Rm 10.8. A vontade secreta de Deus pertence a todas as coisas que Ele
quer efetuar ou permitir, e que, portanto, São absolutamente fixas. A vontade
revelada prescreve os deveres do homem e apresenta o modo pelo qual ele pode
fruir as bênçãos de Deus.
c. A liberdade da vontade de Deus. Freqüentemente se
debate a questão se Deus, no exercício de Sua vontade, age necessária ou
livremente. A resposta a esta questão requer cuidadosa discriminação.
Exatamente como há uma scientia necessaria e uma scientia libera, há também uma
voluntas necessaria (vontade necessária) e uma voluntas libera (vontade livre)
em Deus. Deus mesmo é o objeto da primeira. Ele necessariamente quer a Si
próprio e quer a Sua natureza santa, bem como as distinções pessoais da
Divindade. Significa que Ele necessariamente se ama a Si próprio e tem prazer
na contemplação e Suas perfeições. Todavia, Ele não está sob nenhuma compulsão,
mas age de acordo com a lei do Seu Ser; e esta, conquanto necessária, é também
a suprema liberdade. É mais que evidente que a idéia de causação está ausente
neste ponto, e que a de complacência ou de auto-aprovação está no primeiro
plano. As criaturas de Deus são, porém, os objetos da Sua voluntas libera. Deus
determina voluntariamente o que e quem Ele criará, e os tempos, lugares e
circunstâncias de suas vidas. Ele traça as veredas de todas as Suas criaturas
racionais, determina o seu destino e as utiliza para os Seus propósitos. E
embora as dote de liberdade, contudo Sua vontade lhes controla as ações. A
Bíblia fala desta liberdade da vontade de Deus nos termos mais absolutos, Jo
11.10; 33.13; Sl 115.3; Pv 21.1; Is 10.15; 29.16; 45.9; Mt 20.15; Rm 9.15 – 18,
20, 21; 1 Co 12.11; Ap 4.11. A igreja sempre defendeu esta liberdade, mas
também deu ênfase ao fato de que não pode ser considerada como indiferença
absoluta. Duns Scotus falava de uma vontade de Deus em nenhum sentido
determinada; mas esta idéia de uma vontade cega, agindo com perfeita
indiferença, foi rejeitada pela igreja. A liberdade de Deus não é pura indiferença,
mas autodeterminação racional. Deus tem Suas razões para querer como quer,
razões que O induzem a escolher um fim e não outro, e uma série de meios para
realizar um fim, em preferência a outros meios. Em cada caso há um motivo
predominante, que torna o fim escolhido e os meios selecionados sumamente
agradáveis a Ele, embora não sejamos capazes de determinar que motivo é esse.
Em geral se pode dizer que Deus não pode querer nada que seja contrário à Sua
natureza, à Sua sabedoria ou amor, à Sua justiça ou santidade. O dr. Bavinck
assinala que raramente podemos discernir por que Deus quis uma coisa e não
outra, e que não nos é possível, e tampouco permitido, procurar alguma base
mais profunda que a vontade de Deus em que as coisas se fundam, porque todas as
tentativas desse jaez redundam em procurar uma base para a criatura no próprio
Ser de Deus, privando-o do seu caráter contingente e tornando-a necessária,
eterna, divina.
d. A vontade de Deus em relação ao
pecado.
A doutrina da vontade de Deus muitas vezes dá surgimento a graves questões.
Levantam-se aqui problemas que nunca foram resolvidos e que provavelmente são
insolúveis para o homem.
(1) Diz-se que, se a vontade decretatória de
Deus determinou também a entrada do pecado no mundo, com isso Deus é o autor do
pecado e realmente quer uma coisa contrária às Suas perfeições morais. Para
fugirem à dificuldade, os arminianos dizem que a vontade de Deus, permitindo o
pecado, depende do Seu pré-conhecimento do curso que o homem escolheria. Os
teólogos reformados (calvinistas), embora mantendo, com base em passagens como
At 2.23; 3.8; etc., que a vontade decretatória de Deus inclui também os atos pecaminosos
do homem, sempre têm o cuidado de assinalar que se deve conceber isto de modo
que não se faça de Deus o autor do pecado. Admitem francamente que não podem
resolver a dificuldade, mas ao mesmo tempo fazem algumas valiosas distinções de
comprovada utilidade. A maioria deles insiste em que a vontade de Deus quanto
ao pecado é de permitir o pecado, e não de efetuá-lo, pois Ele realiza o bem
moral. Esta terminologia é permissível, supondo-se que seja compreendida
corretamente. Deve-se ter em mente que a vontade de Deus de permitir o pecado
leva consigo a certeza de que o pecado virá a ocorrer. Outros chamam a tenção
para o fato de que, embora os termos “vontade” e “querer” possam incluir a
idéia de complacência ou deleite, às vezes indicam uma simples determinação da
vontade; e que, portanto, a vontade de Deus de permitir o pecado não implica
necessariamente que Ele tem deleite ou prazer no pecado.
(2) Diz-se, ainda, que a vontade decretatória
de Deus e Sua vontade preceptiva muitas vezes são contraditórias, que Sua
vontade decretatória inclui muitas coisas que Ele proíbe em Sua vontade
preceptiva, e exclui muitas coisas que Ele ordena em Sua vontade preceptiva,
cf. Gn 22; Êx 4.21-23; 2 Rs 20.1-7; At 2.23. Todavia, é de grande importância
sustentar tanto a vontade decretatória como a preceptiva, mas com o definido
entendimento de que, embora nos pareçam diversas, são fundamentalmente uma só
em Deus. Conquanto uma solução perfeitamente satisfatória da dificuldade esteja
fora de questão no presente, podemos aproximar-nos de uma solução. Quando
falamos da vontade decretatória e da vontade preceptiva de Deus, empregamos a
palavra “vontade” em dois sentidos diferentes. Pela primeira, Deus determinou o
que Ele fará ou o que virá a acontecer; na segunda Ele nos revela o que estamos
na obrigação de fazer. Ao mesmo tempo, devemos lembrar-nos de que a lei moral,
a regra do nosso viver, é também, em certo sentido, a encarnação da vontade de
Deus. É uma expressão da Sua natureza santa e daquilo que esta naturalmente
requer de todas as criaturas morais. Daí, outra observação pode ser
acrescentada à anterior. A vontade decretatória e a vontade preceptiva de Deus
não estão em conflito no sentido de que na primeira Ele tem prazer no pecado e
na segunda não; nem no sentido de que, de acordo com a primeira, Ele não quer a
salvação de todos os indivíduos como uma violação positiva, e de acordo com a
segunda, quer. Mesmo de acordo com a vontade decretatória Deus não tem prazer
no pecado; e mesmo de acordo com a vontade preceptiva Ele não quer a salvação
de todos os indivíduos com uma volição positiva.
2. O PODER SOBERANO DE DEUS.
A soberania de Deus acha expressão, não somente na vontade divina, mas também na onipotência de Deus, ou em Seu poder de executar a Sua vontade. Pode-se denominar o poder de Deus a eficaz energia da Sua natureza, ou a perfeição do Seu Ser pela qual Ele é a causalidade absoluta e suprema. É costume distinguir entre uma potentia Dei absoluta (um absoluto poder de Deus) e uma potentia Dei ordinata (poder ordenado de Deus). Contudo, a teologia reformada, calvinista, rejeita esta distinção no sentido em que a entendiam os escolásticos, que afirmavam que Deus, em virtude do Seu poder absoluto, pode efetuar contradições, e pode até pecar e aniquilar-se a Si próprio. Ao mesmo tempo, adota a distinção como expressão de uma verdade real, embora nem sempre a apresente do mesmo modo. De acordo com Hodge e Shedd, o poder absoluto é a eficiência divina, exercida sem a intervenção de causas secundárias; enquanto que o poder ordenado é a eficiência de Deus, exercida pela ordenada operação de causas secundárias.2 O conceito mais geral é exposto por Charnock como segue: “Absoluto é o poder pelo qual Deus é capaz de fazer o que Ele não fará, mas que tem possibilidade de ser feito; ordenado é o poder pelo qual Deus faz o que decretou fazer, isto é, o que Ele ordenou ou marcou para ser posto em exercício; os quais não são poderes distintos, mas um e o mesmo poder. O Seu poder ordenado é parte do Seu poder absoluto; pois se Ele não tivesse poder para fazer tudo o que pudesse desejar, não teria poder para fazer tudo que deseja”.
A potentia ordinata pode ser definida como a
perfeição de Deus pela qual Ele, mediante o simples exercício da Sua vontade,
pode realizar tudo quanto está presente em Sua vontade ou conselho. O poder de
Deus, em seu exercício fatual, limita-se àquilo que o Seu decreto eterno
abrange. Mas o exercício fatual do poder de Deus não representa os seus
limites. Deus poderia fazer mais que isso, se fosse esta a Sua intenção. Nesse
sentido podemos falar em potentia absoluta, ou poder absoluto de Deus. Deve-se
manter esta posição contra aqueles que, como Schleiermacher e Strauss,
sustentam que o poder de Deus se limita àquilo que Ele realiza de fato. Mas em
nossa afirmação do poder absoluto de Deus precisamos acautelar-nos contra
noções errôneas. A Bíblia nos ensina, por um lado, que o poder de Deus
estende-se além daquilo que é realizado de fato, Gn 18.14; Jr 32.27; Zc 8.6; Mt
3.9; 26.53. Portanto, não podemos dizer que aquilo que Deus não realiza
concretamente não Lhe é possível realizar. Mas, por outro lado, ela indica
também que há muitas coisas que Deus não pode fazer. Ele não pode mentir,
pecar, mudar, e não pode negar-se a Si próprio, Nm 23.19; 1 Sm 15.29; 2 Tm
2.13; Hb 6.18; Tg 1.13, 17. Não há poder absoluto nele, divorciado de Suas
perfeições, e em virtude do qual Ele pudesse fazer todo tipo de coisas
inerentemente contraditórias entre si. A idéia da onipotência de Deus é
expressa pelo nome „El-Shaddai; e a Bíblia fala a seu respeito em termos que
não deixam dúvida, em passagens como Jó 9.12; Sl 115.3; Jr 32.17; Mt 19.26; Lc
1.37; Rm 1.20; Ef 1.19. Deus manifesta o Seu poder na criação, Rm 4.17; Is
44.24; nas obras da providencia, Hb 1.3; e na redenção de pecadores, 1 Co 1.24;
Rm 1.16.
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