Hermenêutica Entre os Judeus
Provavelmente, um dos primeiros empreendimentos
do uso da Hermenêutica entre os judeus venha da época de Esdras, conforme lido
em Ne.8:1-8, onde consta uma menção especial à leitura da Torah nunca dantes
vista entre os judeus. Deve[1]se levar em consideração
que a extrema preocupação com a leitura da Torah deu-se após ou a partir do
exílio babilônico, por conta do sentimento de culpa nutrido pelos movimentos
deuteronomista e sacerdotal, levando assim à mente da comunidade que o exílio
era o castigo de Javé ao povo desobediente à sua Palavra.
A idéia de reunir pessoas em grupos nesse
período culminou mais tarde no projeto de sinagoga judaica
(Ez.3:15;8:1;14:1;20:1).
Júlio Trebolle Barrera levanta alguns fatores
que contribuíram para o nascimento e desenvolvimento da interpretação bíblica
no judaísmo a partir das épocas persa e helenística6. Em primeiro lugar
ressalta que o desenvolvimento do cânon hebraico (Tanach) exigiu que os
escritos mais tardios (literaturas sapiencial, apocalíptica e apócrifa)
representassem uma espécie de interpretação e de reescritura de textos e
tradições de épocas anteriores. Aliás, isso já era uma prática dentro do
próprio texto canônico (comparar o Decálogo em Ex.20, Dt.5 e Jr.17:21- 22; ver
também a promessa incondicional a Davi que o seu reino será eterno em II
Sm.7:12-16 e I Rs.2:1-9, verificando-se como diferencial o cumprimento da
Torah). Em segundo lugar, para manter vigentes as leis e instituições do povo
judeu e para manter a própria identidade e esperança nas difíceis situações de
cada época, era necessária uma releitura e uma nova compreensão dos velhos
textos legais e das tradições históricas de Israel. Por fim, a necessidade de
traduzir os textos sagrados hebraicos para a língua aramaica falada na
Palestina e na diáspora judaica oriental e também para o grego, falado por
muitos judeus na diáspora ocidental, obrigava a um grande esforço de
interpretação ou de atualização dos textos hebraicos.
Continuando nesse processo histórico, no século
III AC aparece a Septuaginta (LXX), primeira tradução escrita do AT, que tem
sido também considerada uma obra de caráter interpretativo do mesmo. Justamente
por conta desse aspecto tem sido objeto de diversas críticas, sendo que as mais
freqüentes apontam para a helenização do texto hebraico. Barrera aponta a
tradução de Gn.1:2 “deserto e vazio”, helenizado para “invisível e
desorganizado”.
Já Hans W.Wolff, em sua Antropologia do AT,
aponta que a LXX descaracterizou o sentido de alguns termos designadores da
antropologia judaica tais como “Nephesh” (“goela” traduzida por “alma”) e
“Ruach” (“vento”, traduzido por “espírito”), dando um outro sentido ao leitor
moderno que encontra os termos helenizados nas traduções atuais que seguem o
texto da LXX 8. Outro fator é o da eliminação de antropomorfismos e
antropopatismos. Por exemplo, em Dt.32:10, falando da relação entre Javé e seu
povo, o texto hebraico oferece a expressão: “como a menina dos seus olhos”,
enquanto que a versão grega omite o pronome “seus” (“...como a menina de um
olho” ).
Se na LXX a interpretação helenística estava
embutida na tradução, nos Targumim a interpretação se localizava na fronteira
entre a tradução e o comentário. Em estudos introdutórios já foi visto que o
Targum evoluiu com a diminuição do uso do hebraico como língua corrente e a
necessidade de se traduzir o texto nas sinagogas para o dialeto aramaico da
região. Acontece que o Targum é um jogo entre tradução e interpretação que pode
acontecer de duas formas: parafraseando uma tradução literal ou convertendo a
própria tradução numa paráfrase verdadeira. A primeira forma é a mais primitiva
e corresponde à fase oral dos Targumim (tradução-comentário); a segunda
corresponde ao período de escritura quando apareceram Targumim famosos tais
como o “ONKELOS” e o “NEOPHYTI”.
Abaixo, um exemplo de paráfrase extraído do
Targum “NEOPHYTI”:
• Gn.3:15 : “Inimizade colocarei entre ti e a
mulher, entre tua prole e a dela, e ocorrerá que quando os seus filhos
guardarem a Torah e colocarem em prática os mandamentos, eles apontarão,
esmagarão a cabeça e te matarão; quando, porém, abandonarem os mandamentos da
Torah, tu apontarás e ferirás seu calcanhar e o farás adoecer; somente o filho
dela terá cura e tu, serpente, não terás remédio, pois eles estarão prontos a
reconciliar-se no futuro, no dia do Rei Messias”.
Provavelmente, os intérpretes já enfrentavam
problemas tais como a explicação de termos difíceis, a necessidade de
eliminação de antropomorfismos, a atualização de termos relativos a lugares,
povos e instituições, entre outras dificuldades. A isso soma-se o próprio
desenvolvimento teológico influenciando a tradução, como foi visto na paráfrase
de Gênesis acima transcrita, onde o fator determinante é a preocupação com a
observância da Torah.
A. Hermenêutica Judaico-helenística.
A interpretação utilizada pelos judeus da
diáspora difere bastante daquela utilizada pelos judeus palestinos, cuja
interpretação era centrada na prática da Torah. Para os judeus da diáspora
helenística, o Pentateuco tinha se convertido num corpo legislativo, baseado
numa determinada concepção da divindade mais próxima da razão filosófica do que
da revelação do Sinai. Esta concepção divina é demonstrada através das
freqüentes referências ao Logos e a conceitos tais como causalidade, destino,
imortalidade, etc. Assim os mandamentos bíblicos capacitavam o indivíduo para o
triunfo sobre suas paixões, libertando a alma da escravidão do corpo, podendo
assim prosseguir na busca da vida eterna no reino do imaterial. Por essa razão,
alegorizava-se o Pentateuco, transformando-se o Deus bíblico em razão pura e
transcendente, totalmente espiritual e livre de paixões ( daí a ausência de
antropomorfismos e antropopatismos na LXX).
Um outro fator determinante na hermenêutica
judaico-helenística foi a influência do Gnosticismo. A salvação na história dá
lugar à salvação pela gnose, obtida pela revelação sobrenatural dispensada
unicamente aos iniciados. Os sinais externos e visíveis do judaísmo (
circuncisão, leis alimentares e higiênicas ) dão lugar à busca pelo
conhecimento pleno e verdadeiro. Dois representantes desta tendência merecem
destaque: Fílon de Alexandria e Flávio Josefo.
Fílon, ao mesmo tempo exegeta e filósofo, se
caracterizou pelo uso constante de alegorias para interpretar a Torah. Seus
estudos eram centrados na lei de Moisés e na sabedoria, com uma adaptação da
filosofia platônica, apresentando Moisés mais como um filósofo que como um
legislador. Os temas por ele desenvolvidos são mais antropológicos,
cosmológicos e psicológicos. Assim, o templo simboliza o mundo(DE ESPECIALIBUS
LEGIDUS 1:66); as quatro cores das vestimentas do Sumo Sacerdote são símbolos
dos quatro elementos naturais (DE VITA MOSIS 2:88); Adão é o símbolo da
inteligência, Eva da sensibilidade, e os animais, das paixões (LEGUM ALLEGORIA
2:8-9, 24, 35–38). Um outro exemplo de interpretação alegórica é o texto da
escada de Jacó (Gn.28:12), que significa para Fílon o ar suspenso entre o céu e
terra e também a alma situada entre a sensibilidade e o intelecto. O fundamento
filosófico para esta hermenêutica está no pensamento platônico, que reza que
ninguém deve acreditar em algo que seja indigno de Deus. Assim, quando Fílon
encontrava no texto bíblico algo que contrariava sua lógica recorria à
interpretação alegórica para explicar o texto. Segundo Battista Mondim, Fílon
foi o primeiro a procurar uma síntese entre as Escrituras e Platão.
Flávio Josefo é conhecido como historiador
judeu no primeiro século d.C. e, apesar de receber esta designação, demonstra
agir hermeneuticamente com relação aos textos bíblicos. Dentro de seu projeto
de apresentar a história dos judeus ao público greco-romano a partir de uma
retórica helenística, ele resume, sistematiza, amplia e dramatiza as narrações
bíblicas. Por exemplo, no prólogo de “Antigüidades”, Josefo se aproxima de
Fílon (OPIFICIO MUNDI) explicando o fato da narração sobre a criação preceder o
relato da entrega da Torah: a ordem dos relatos tem por objetivo preparar a
obediência daqueles que vão receber a Torah. Da mesma forma, Flávio Josefo e
Fílon interpretam alegoricamente a tríplice divisão do Tabernáculo: terra, mar
e céus.
B. Hermenêutica Rabínica.
Para uma
compreensão mais adequada do rabinismo, é necessário conhecer primeiro os
conceitos básicos da interpretação escriturística a partir do período persa:
MIDRASH (comentário, investigação) – é a prática da exposição exegética das
Escrituras, com finalidade homilética e hagádica. É a ponte que liga a
escritura à literatura rabínica. Apresenta-se em três classes: Halakah, Hagadah
e Pesher. HALAKAH (caminhar, guiar) – representa o desenvolvimento da
legislação mosaica específica, contendo leis não existentes no texto canônico
(ex: 39 tipos de trabalho e outras atividades cujo exercício era proibido no
sábado). No próprio texto canônico temos um exemplo de Halakah na proibição do
casamento de judeus com mulheres estrangeiras (Esdras capítulos 8 e 10).
A Halakah pretenda governar todos os âmbitos da
vida de um judeu, desde o amanhecer até o anoitecer, desde o nascimento até a
morte. Deu origem ao legalismo judaico. HAGADAH (narração) – representa a
tendência hermenêutica mais livre e edificante, a qual abrange todas as partes
não legalistas da Escritura, caracterizando-se mais ilustrativa e menos
exegética. Por meio de aperfeiçoamento das narrativas e profecias bíblicas,
fomentava-se a fé e a esperança judaicas. PESHER (interpretação, comentário) –
se propõe a atualizar os oráculos proféticos, ligando eventos ou personagens do
passado a semelhantes eventos e personagens do presente, dando-lhes um sentido
de cumprimento.
MISHNAH (repetição) – constitui-se no resultado
escrito da evolução da Halakah, ou seja, gerações de intérpretes identificados
com os fariseus desde 150 AC desenvolveram leis orais codificando-as por volta
de 180 DC . É a primeira coleção oficial de doutrina judaica pós bíblica de
caráter predominantemente jurídico, constando de 73 tratados distribuídos em
seis divisões, escritos em hebraico. Evoluiu para a GUEMARA.
GUEMARA
(complemento) – Por volta de 550 DC os rabinos elaboraram um comentário
complementar à MISHNAH em aramaico como um tipo de suplemento em duas versões:
a Guemara Palestinense e a Guemara Babilônica, esta última, a mais completa.
TALMUD (doutrina, ensino) – O Talmud é o
resultado final do desenvolvimento da MISHNAH e da GUEMARA, cujo trabalho ficou
pronto por volta do final do século IV d.C. É toda uma síntese de tradições,
leis bíblicas, comentários sobre a Torah, resultantes do processo hermenêutico
iniciado pela MIDRASH.
• As Escolas de Hillel e Shammay – Através do
conhecimento prévio da hermenêutica judaico-helenística dos conceitos básicos
da hermenêutica rabínica, pode-se entender melhor as interpretações de Hillel e
Shammay. Hillel, vindo da Babilônia e de uma cultura helenística no primeiro
século a.C., deu pouco ou quase nenhum valor ao fervor apocalíptico e ao messianismo
radical de caráter político desenvolvido entre os zelotas. Assim, todo o seu
ensino vinha mais da dedução racional que da tradição, servindo-se do jogo de
pergunta e resposta próprio do método socrático. Criou sete regras de
interpretação, as quais dão ênfase ao estudo exegético das escrituras, deixando
de lado a tradição oral. Dentre essas regras, destacam-se: uso do contexto,
dedução do especial para o geral (implicações gerais deduzidas de uma
passagem), inferência por analogia (palavras que têm significação idêntica
poderão ser tratadas igualmente, mesmo que estejam ligadas a declarações muito
diferentes), uso comparativo de outras passagens. Percebe-se, então, que Hillel
tinha a preocupação sempre nova de atualizar a Torah para os judeus das
diversas situações (diáspora, palestinos), o que lhe valeu a acusação de
modificador da Torah e de criador de novas leis (Taqqanot). A sua forma de
interpretação estava mais afinada com a Halakah, momento em que convertia usos
e costumes próprios do seu relativismo, conferindo-lhes valor sagrado.
• Shammay, um outro importante rabino, mais
fechado e conservador, e seguidor da tradição, demonstra, em determinados
momentos, ser mais aberto e flexível que Hillel na interpretação da Torah. Não
aceitando o influxo do contexto e das exigências da modernidade sobre o texto
bíblico, demonstra, segundo A. Guttmann (citado por Barrera), a “preocupação em
salvaguardar os princípios fundamentais e não tanto uma intransigência absoluta
na aplicação prática da lei.”11 Por exemplo, na interpretação do texto de Dt.24:1,
sobre o divórcio, o termo “coisa vergonhosa”, com relação à mulher como motivo
fundamental para o divórcio significava para Hillel qualquer coisa que
desagradasse ao marido (infidelidade, uma palavra mal dirigida, o encontro de
uma mulher mais agradável, etc.) enquanto que para Shammay representava apenas
a infidelidade conjugal.
• Apesar das grandes discussões e acusações, o
debate rabínico estava sempre inacabado e aberto a reconsiderações,
correspondendo mais ao estilo dialógico, o que permitia que opiniões contrárias
pudessem ser consideradas igualmente verdadeiras e dignas de inspiração. Talvez
seja este o motivo por que a teologia judaica nunca tenha chegado a assumir o
caráter de dogma, a não ser em momentos em que se viu na tarefa de defender-se
de algumas ameaças tais como o Gnosticismo, momento em que fez afirmações sobre
o monoteísmo e sobre a bondade da criação.
• Judeus Caraítas – Caraítas ou “beni mikra”
(filhos da leitura), oriundos do século IX d.C., cuja seita representa uma
reação contra a influência do maometismo no rabinismo judeu e na tradição,
defendendo a escritura como única autoridade em matéria de fé, aplicando nos
seus estudos métodos de investigação gramatical e lexicográfica, chegando à
produção de comentários escritos. Graças a isso, foram apelidados de “os
protestantes dentre os judeus”. A palavra que os designa ( caraítas ) vem do
nome da cidade onde se originou o movimento: Qayrawan, no Egito. Do ponto de
vista hermenêutico são eles os que mais se aproximam dos essênios, defendendo o
princípio da primazia da lei escrita, a ênfase na esperança
messiânico-apocalíptica, e determinadas práticas, tais como: a celebração da
festa de Pentecostes, a monogamia e rituais de sepultamento dentro da liturgia
de Qumram. Provavelmente os caraítas descendem de uma ala conservadora dos
saduceus, os zadoquitas. Estudos e descobertas arqueológicas recentes mostram que
os zadoquitas também habitaram o mosteiro de Qumram. A reação dos rabinos ao
movimento caraíta culminou na conclusão do texto massorético.
• Judeus Cabalistas – A palavra Qabbalah
significa recepção e designa o conjunto de doutrinas judaicas de caráter
esotérico, místico e mágico. O movimento teve sua origem na Espanha e na
Alemanha por volta do século XIII, como uma reação contra a filosofia
racionalista. Os cabalistas conferiam valor sobrenatural a cada palavra, letra
ou mesmo sinal do texto massorético, fazendo combinações numéricas,
superposições e substituições de letras e sinais, na busca de sentidos ocultos.
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