História da interpretação bíblica II

 

História da interpretação bíblica II

 

Hermenêutica Cristã

 

Como ponto de partida para o estudo da hermenêutica cristã, deve-se levar em consideração que o cânon do AT ainda não se encontrava cristalizado quando os livros do NT estavam sendo escritos. De acordo com Barrera, os primeiros cristãos utilizaram os princípios e métodos da exegese judaica com uma única diferença: a leitura cristológica do AT. A seguir, algumas das características dessa leitura:

A. Seleção temática de passagens do AT. Para desenvolver o tema “Cristo[1]Pedra” (I Pd 2:6; Ef 2:20; Mt 21:42; At 4:11), a igreja editou os textos de Is 28:16; Sl 118:22 e Is 8:14. Essa técnica é denominada de “testimonia”. Essa prática não foi exclusiva da igreja cristã. Em Qumram há um manuscrito repleto desta prática (4QTest); um destes testimonia edita as passagens de Dt 5:28s; 18:18s; Nm 24:15s e Dt 33:8-11:

“Um profeta suscitarei para eles do meio de seus irmãos, como a ti, e porei minhas palavras na sua boca. E ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar. Eu mesmo pedirei contas a quem não escutar as palavras que ele pronunciar em meu nome. E pronunciou sua mensagem e disse: Oráculo de Balaão, filho de Peor, oráculo do homem de olhar penetrante, oráculo de quem ouve as palavras de Deus e conhece os pensamentos do altíssimo, que vê as visões do poderoso, cai em êxtase e tem os olhos abertos. Vejo-a mas não é agora, contemplo mas não está perto: uma estrela se levanta de Jacó e um cetro se eleva de Israel, quebra as têmporas de Moab e o crânio de todos os filhos de Set.”

B. Perspectiva Escatológica. A redenção de Deus realiza-se na história, donde vem a idéia de que a geração presente se encontra às portas da consumação final dessa história de salvação iniciada e concluída por Jesus. Essa divisão da história (sem o cristocentrismo) é compartilhada por cristãos e judeus Qumramitas.

C. Leitura Tipológica. Há a compreensão dos elementos do AT como tipos dos elementos que se apresentam no novo pacto. Por exemplo, a criação e a salvação (o segundo Adão) e a aliança através do novo êxodo. Um outro bom exemplo é a leitura que o livro de Hebreus faz do AT.

D. Princípio da Personalidade Corporativa (Corporate Personality). Essa realidade na comunidade de israelitas no AT é transposta para a igreja cristã na sua auto-interpretação como “corpo de Cristo”(Rm.15; I Cor.12:12-31). Os estudos na área de Antropologia do AT feitos por Weler Robinson no início do Século XX mostram com mais detalhes que no AT o indivíduo inteiro está na comunidade e a comunidade inteira está no indivíduo, ou seja uma figura individual pode englobar todas que com ela se relacionam. Essa concepção permite a Paulo falar da existência de todos os homens “em Adão”, ou dos israelitas “em Abraão”. .

E. Jesus e o AT. A primeira coisa a ser trabalhada nesta matéria é o entendimento da escolha textual pela qual Jesus citou o AT visto que em sua época eram conhecidos o texto grego da LXX e o texto hebraico palestinense. Na maior parte das vezes o texto que está nos lábios de Jesus corresponde ao da LXX (Mt.15:8-9; Mc.7:6-7 comparado a Is.29:13); outras vezes corresponde ao texto hebraico (Mt.11:10 e Lc.7:27 comparado a Ml.3:1 e Is.40:3); outras vezes não corresponde a qualquer texto conhecido (Lc.4:18-19 comparado a Is.61:1-2, no qual omite e acrescenta termos). Esse tipo de ocorrência levantou a atenção para uma questão há muito discutida mas que conta com poucas evidências. Como se sabe, Jesus, os discípulos e a Igreja palestinense falavam aramaico, mas os evangelhos foram escritos em grego. A existência de inúmeros aramaísmos no texto grego é um forte indício de que um texto primitivo aramaico contendo os “Logia” de Jesus teria sido traduzido para o grego, utilizando assim preferencialmente passagens do AT oriundas do texto da LXX. Entretanto, é muito provável também que o próprio Jesus tenha modificado ou selecionado partes do texto (conforme visto em Lc.4:18s), o que poderia explicar a falta de relação com a LXX ou com o texto hebraico.

No que diz respeito à sua visão do AT, Jesus considerou as escrituras inspiradas, sem no entanto aceitar a idéia do ditado verbal, conforme fica claro em Mc. 12:36: “Davi mesmo disse no Espírito Santo...” ( as palavras são de Davi, ainda que inspiradas pelo Espírito Santo ). Além disso, deu ao texto diferentes graus de valorização, na medida em que ajuizou a permanência do casamento, estabelecida em Gn. 2:24, superior à lei, permitindo o divórcio (Dt. 24: 1- 4), conforme Mateus 19.

A partir desta compreensão de sua relação com o AT, é possível estabelecer a forma da hermenêutica de Jesus. Houve momentos em que Jesus modificou o texto para que a profecia tivesse sentido em sua pessoa. Por exemplo, comparar Mt.26:31 e Mc.14:27 com Zc.13:7; em outros momentos Jesus utilizou a forma “Pesher” (relação de um texto do AT com acontecimentos ou personagens da época escatológica que o intérprete crê estar vivendo) conforme formulação em Lc.4:21. Nas questões de ordem moral e religiosa Jesus foi categórico ao usar a forma literal da letra do texto (como em Mt.15:4 e Mc.7:10) mas também, em outros momentos, utilizou a “Midrash” (a expressão “quanto mais” em Mt.7:11; Lc.11:13; típica de Hillel).

Jesus criticou duramente a tradição (conforme visto nos “logia” – sermão do monte) mas, em outros momentos, não hesitou em usar ensinamentos do rabinismo que viriam a constar no Talmud , aplicando-os dentro de sua visão “antropo-teocêntrica” , conforme Mt. 7:12 . Essa maneira flexível de Jesus usar as Escrituras permite-lhe também, ao mexer com a tradição mais antiga, construir uma seqüência lógica de argumentos a partir da própria história judaica para apoiar o seu ensinamento, como em Mt. 12:1-8, na questão do “Sábado”.

Jesus estabelece ainda, no sermão da montanha, que suas leis iam além das leis do AT. Enquanto que os fariseus e escribas interpretavam as leis como proibitivas de ações externas, Jesus buscava um sentido mais profundo, que refletisse as atitudes do coração. Por exemplo, não bastava retrair-se do adultério ou do crime; o homem deve retrair-se da cobiça e da raiva.

De acordo com Viertel, “Jesus usou algumas formas de expressão dos rabinos, mas o conteúdo dos seus ensinos era diferente. Ele engrandeceu a presença do Reino de Deus em vez da lei. Ele identificou-se como o cumprimento da profecia ao invés de apontar a vinda do Messias. Ele interpretou o Velho Testamento à luz de uma nova era que raiava, em vez de enfatizar a interpretação de sentenças, cláusulas, frases e até mesmo palavras simples, independentemente do contexto ou da ocasião histórica”.13 O fundamental nesse estudo é ver que se a Igreja cristã primitiva construiu uma hermenêutica cristocêntrica, esta nasceu também graças ao uso que o próprio Jesus fez das Escrituras.

F. Paulo como Intérprete. Dentro do estudo da Hermenêutica paulina vale ressaltar algumas de suas características:

• Paulo usa com muita freqüência o texto do AT quando escreve para comunidades de origem judaica (Rm., Gálatas e I/II Co.), mas não o utiliza quando escreve a comunidades com predominância gentílica (Colossenses, Filipenses e I/II Tessalonicenses), o que torna Paulo um exegeta por excelência. Fato mais interessante é que das 93 citações que faz do texto do AT, modifica o texto em 52 casos (ex.: comparar Rm.9:17 com Ex.9:16). Seria, como dizem alguns14, uma evidência de que Paulo citava textos de memória, ou que era influenciado pela sua tradição rabínico-midráxica ?

• Como Hillel, procurou adaptar o texto bíblico aos problemas de seu tempo, contextualizando-o (comparar Rm.9:25 com Os.2:21-23).

• Paulo busca elementos de diversas correntes religiosas e filosóficas do seu tempo, dialogando com as mesmas e dando-lhes roupagem cristocêntrica. Abaixo, eis algumas dessas correntes:

G. Essênios. Todos os homens pecaram (Rm.3:23 comparado a I Qh.1:22 ou a Ec.7:20). O texto de I Qh.1:22 é parte da coleção de Hinos ou hodayôt encontrados nas descobertas do Mar Morto15. O homem não pode obter o perdão de Deus pelas obras ou pelo cumprimento da Torah (Gl.2:16 comparado a I Qh.4:30).

H. Rabinismo. Em I Cor.10:1-4, ao relacionar o batismo cristão com a passagem do Mar Vermelho, Paulo alude a textos rabínicos da Gemara Babilônica que justificam o batismo de prosélitos à luz do Êxodo.

I. Fílon. Tal qual Fílon, Paulo apela para a retórica grega (At.19:8; 28:23) e moderadamente para o uso alegórico (I Cor.9:9-10; Gl.4:21-31).

J. Doutrina Cristã. Sem dúvidas que um dos méritos de Paulo está no fato que ele é um dos responsáveis pela sistematização da doutrina cristã, a partir do que outros, como Agostinho, fundamentam suas interpretações, as quais até hoje são tidas pela igreja cristã (tanto católica quanto protestante) como inspiradas, visto que muito daquilo que se tem como “doutrina bíblica” passa pelo filtro patrístico.

Paulo lançou mão da tipologia para estabelecer a relação entre o AT e Cristo ( o servo sofredor, de Isaías 53, representa Cristo; as promessas de Deus a Abraão e seus descendentes tornaram-se as promessas de Deus aos crentes em Cristo, que são o novo Israel ). Em outro texto, Adão é considerado como um “ tipo de um que devia vir ” ( Rm. 5:14 ). Sua interpretação do AT é cristocêntrica: Cristo é o cumprimento do AT.

Paulo utiliza a alegoria com um aspecto distintivo em relação aos gregos e rabinos. Enquanto aqueles buscavam a alegoria ou para explicar mitos sobre os deuses ou para dar sentido a algo que contraria sua lógica ( concepção do “indigno de Deus” em Platão ), e estes usavam as alegorias na busca dos significados ocultos, Paulo encontra nos relatos do A.T. fatos que, sem perder sua veracidade histórica, possuem um sentido espiritual que será encontrado por meio da alegoria ( exemplo disso é a interpretação da história de Agar e Sara, aplicada a Israel escravo e livre, em Gl. 4:22-26 ).

Em Paulo temos o fundamento do conceito de AT , embora a concepção canônica de A . T. só seja estabelecida após a consolidação dos 27 livros do NT. Isto fica evidente em sua declaração de que as escrituras permaneceram encobertas até que o véu foi removido por Cristo ( II Cor. 3: 13 – 15 ).


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