Período Patrístico

 

Período Patrístico
 


Após o período apostólico, entram em cena os herdeiros e continuadores da tradição apostólica, conhecidos historicamente como os pais da Igreja. Estes se notabilizaram a partir do 2º século da era cristã.

A. A Hermenêutica no 2º Século. Este período caracterizou-se, na história da Igreja, por um grande conflito: a falta de consenso quanto à aceitação do AT como um livro cristão. Por um lado, havia o desenvolvimento da cultura helenizada como forma e expressão legítima da fé cristã e até mesmo a rejeição do AT ( como se vê no pensamento de Marcião, em 144 d.C.). Por outro lado, a não interpretação cristológica do texto vetero-testamentário, sendo ele valorizado como escritura única da Igreja, como se vê no ebionismo, que leva a Igreja à assimilação das práticas legalistas do judaísmo. Provavelmente nesta época, surgiu o último texto do NT, a 2ª Epístola de Pedro. Nele, é interessante notar a inclusão das cartas de Paulo com escritura ( 3:16 ), o que pode ter tido a finalidade de enfocar a relação entre o Antigo e o NT ( tão presente nos escritos paulinos ). Embora o conflito judaico-cristão remonte aos primeiros tempos da Igreja ( At 15; Rm 14; Gálatas ), é no segundo século e, principalmente a partir de Marcião, que ganha dimensão de debate sistematizado e confronto escrito. Quando Marcião rejeita o AT, ele o faz porque sua interpretação do texto é literal. Da mesma forma, Clemente Romano, nem chega a utilizar a interpretação tipológica, como fazia o apóstolo Paulo, optando também pelo literalismo.

Esta interpretação literal do AT torna as leis de Israel vazias e sem aplicação para os tempos modernos. Esta rejeição do AT também foi forte entre os gnósticos. Valentino aplica a passagem de Jo. 10:8 aos profetas: “ Todos os que vieram antes de mim eram ladrões e assaltantes”; Ptolomeu, mais moderado, divide o Pentateuco em três partes, quanto a sua origem: a primeira parte devida a Deus ( o decálogo ), a segunda atribuída a Moisés ( as leis do Deuteronômio ) e a última atribuída aos anciãos ( as leis ritualísticas, de pureza e da guerra santa ). Em sua carta a Flora, condena essas últimas, as quais conduzem o homem ao mal e, reduz o valor das leis ritualísticas ao tempo para o qual foram escritas. Quanto aos nomes de Deus encontrados no AT ( Elohim, El Shaddai, Javé Tsevaoth ), os gnósticos os interpretam como referindo-se a deuses distintos, subordinados ao Deus Pai desconhecido ( o criador ).

Diante das tendências marcionitas e gnósticas, a alternativa para a Igreja cristã quanto à utilização do AT foi a leitura tipológica. Para Justino, o mártir ( em DIÁLOGO COM TRIFON e APOLOGIAS ), em dura crítica a Marcião, a lei é “ tipos ” da realidade futura de Cristo e da igreja. Já a carta de Barnabé é rica em alegorias do AT: os sete dias da criação simbolizam os seis mil anos de duração do mundo, sendo o sábado símbolo do descanso escatológico. O autor dessa epístola ensina que o judaísmo cumpriu a sua missão e que a igreja é herdeira de suas prerrogativas e livros sagrados. Também emprega a GEMATRIA, método no qual as letras das palavras eram convertidas em valores numéricos para uma aplicação escatológica.

Outro pai apostólico, Irineu de Lyon, no final do 2º século, assume um tipo de “exegese de situação” contra o gnosticismo. Se, diante dos judeus, Irineu tende a ser literalista na interpretação cristológica das profecias e alegórico na interpretação da lei e história de Israel, diante dos gnósticos ele é alegórico na interpretação cristológica do AT para poder uni-lo ao NT e tornar Cristo relevante.

Concluindo, pode-se afirmar que a grande questão hermenêutica do cristianismo no 2º século dizia respeito à aceitação do A T e mesmo à sua incorporação ao cânon, questão que voltou a ecoar muitas vezes ao longo da história do cristianismo. A aceitação do AT pelos cristãos não teve um propósito meramente apologético (apontar provas a favor do NT) mas resultou da visão do AT como canal de interpretação da morte e ressurreição de Cristo. De fato, a Igreja se apropriou do AT, interpretando-o como promessa e profecia do Novo.

É interessante perceber o paralelo existente entre a concepção judaica da relação Torah-Profetas e a visão cristã da relação Antigo-NTs. A idéia rabínica concebia a Escritura como Lei e os profetas como intérpretes da lei (razão pela qual Jesus justifica sua atitude liberal em relação ao sábado citando a postura de Davi em I Sm 21:7 ). Semelhantemente, os cristãos vêem o NT como interpretação do Antigo. Nota-se um indício desta percepção até mesmo na ordem dos livros no AT: enquanto na Bíblia judaica a Torah é seguida dos profetas (NeVI’IM) e escritos (KETUBHIM), na Bíblia cristã, os profetas vêm depois da Torah e dos Escritos, numa ratificação de sua relação com o NT, onde se verifica seu cumprimento.

Esta visão remonta ao início do cristianismo, cuja hermenêutica já se caracterizava por este elemento diferencial (veja-se a hermenêutica de Jesus e de Paulo). É, porém, no segundo século, com o desenvolvimento de alguns questionamentos e dentro do processo de definição do cânon, que estes conceitos voltam à tona. Outra idéia presente na visão cristã do A T é sua interpretação tipológica, a partir da visão do N T como cumprimento do A T.

B. A Hermenêutica no 3º Século. Até o que se tem visto até agora, o problema hermenêutico do segundo século tem sido a leitura do AT e sua interpretação como livro cristão, problema esse que a Igreja resolveu através da apropriação das escrituras judaicas e de suas profecias. Entretanto, a partir do Século III levanta-se uma outra questão que é o problema hermenêutico da interpretação bíblica em si mesma caracterizada na luta entre o literalismo e o simbolismo e notabilizada através da escola alexandrina, com Clemente e Orígenes, os quais exaltaram a postura hermenêutica de Fílon, no extremo uso da alegoria, em função do conceito platônico do “indigno de Deus”.

O primeiro a enfatizar essa linha hermenêutica foi Clemente de Alexandria (150 – 215 d.C.). Para ele existe um sentido oculto de face cristológica em cada palavra ou até mesmo cada sinal gráfico do texto sagrado. É essa linguagem misteriosa que precisa ser decodificada através da alegoria. Compreende, entretanto, que as escrituras têm diversos sentidos: literal e teológico, profético e tipológico, filosófico e psicológico e, finalmente, um sentido místico. Como exemplo do sentido místico, Clemente dizia que a figura da mulher de Lot era símbolo do apego às coisas terrenas que impediam a alma de reconhecer a verdade16. Insistia ainda que a alegoria revelava a verdade ao verdadeiro discípulo, mas a escondia de outros, pois o objetivo de Deus era ocultar a verdade17.

Um outro pai eclesiástico da época, Orígenes, se notabilizou por ser o mais erudito de seu tempo. Valeu-se do princípio da racionalidade para interpretar passagens bíblicas que, muitas vezes parecem inacreditáveis, como por exemplo as narrativas de Gênesis (onde existem muitos antropomorfismos e relatos míticos da criação), as quais eram interpretadas por muitos de forma literal. Para Orígenes esses eram os mais simples, que não tinham a capacidade intelectual de compreender o sentido espiritual escondido no texto bíblico através de suas metáforas, símbolos e alegorias. Orígenes crê, no entanto, que existem passagens das escrituras com características literais mas que todas as passagens das escrituras possuem uma vertente espiritual e que a única maneira de se reconhecer o mistério escondido ou a mensagem espiritual é através do uso do método alegórico de interpretação. Orígenes adaptou a tricotomia platônica à interpretação das escrituras, seguindo os passos de Fílon e de Clemente, através da seguinte divisão:

• Sentido Corpóreo (somatikon) – carne – interpretação literal – para principiantes.

• Sentido Psíquico (psiquikon) – alma – para os que já fizeram algum progresso.

• Sentido Espiritual (pneumatikon)– espírito – interpretação alegórica – para os perfeitos, os que são espirituais.

O valor de Orígenes para o seu tempo está no fato que ele elevou a fé cristã ante as críticas externas, as quais enfatizavam a imoralidade do AT bem como a falta de uma explicação lógica e racional da fé em Cristo. Pode-se dizer que ele conseguiu o respeito de não cristãos do seu tempo.

C. A Reação do Literalismo-Histórico do Século IV. Se em Alexandria houve uma grande ênfase da interpretação alegórica das escrituras, em Antioquia, a partir do quarto século houve o rechaço desta tendência e a valorização gramatical e histórica com o retorno da interpretação literal. Essa maneira dentro da igreja síria de interpretar o texto foi grandemente influenciada por exegetas judeus locais e teve como principais expoentes Deodoro de Tarso, Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Teodoro, por exemplo, excluiu do cânon livros tais como Jó, Crônicas, Esdras, Neemias e Cânticos, por não encontrar neles elementos proféticos, messiânicos ou históricos. Alguns dos princípios defendidos pela escola antioquena foram os seguintes:

• Abordagem Gramático-Histórica, com ênfase na literalidade textual; ressaltavam a historicidade da narrativa e procuravam, em seguida, descobrir o sentido teológico da mesma. Assim, Adão era realmente Adão e o paraíso era realmente o paraíso, contrariando assim o conceito platônico do “Indigno de Deus”. Contra os alexandrinos, Teodoro pergunta: “Desde que não há acontecimentos reais, visto que Adão não foi realmente desobediente, como então entrou a morte no mundo e qual o significado de nossa salvação?”

• Com alguma cautela defendiam que algumas passagens podem conter um sentido metafórico, típico, mas de forma diferente do pensamento alexandrino. Por exemplo, em Gl. 4:21-31 o apóstolo Paulo usa o termo “alegoria” para falar dos dois pactos simbolizados em Sara e Agar. No entendimento dos antioquenos, apesar de Paulo usar o termo, a sua forma de interpretar foi diferente, ou seja, ele não esvaziou o sentido histórico de Sara e de Agar, mas fez analogias e pontes de ligação com o seu tempo.

• Conceito de “theoria” (“observar”, “contemplar”) em oposição à “alegoria”. Nesse conceito estuda-se o estado mental dos profetas quando recebiam suas visões. Para os antioquenos, os profetas, ao receberem suas visões, não viam o futuro, mas o presente, sendo que essa visão era um canal condutor de uma tipologia futura ou ainda de acontecimentos messiânicos. O diferencial aqui é que essa tipologia é considerada a partir do profeta e não de quem o interpreta.

• Buscavam determinar a intenção do autor do texto, pela atenção ao sentido histórico das palavras em seu contexto original.

No final do quinto século, a escola antioquena entrou em decadência, depois de perseguições e contradições internas, como por exemplo, Nestor, considerado herege pela sua doutrina das duas naturezas de Cristo. Entretanto, ainda hoje percebe-se uma influência dos princípios da escola de Antioquia nos modelos ortodoxos da interpretação bíblica na igreja cristã.


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